segunda-feira, outubro 10, 2022

O ERRO FATAL

No Séc. IV(a.C.), Platão disse:

"O ensino deve ser dado de forma isenta de constrangimentos porque o homem livre não deve aprender como escravo; logo não se deve usar de violência na educação das crianças mas que se instruam brincando".

Contudo o erro teve início, de forma filosófica e organicamente pensada com Platão e sua proposta escrita, impressionante de argumentação filosófica, de uma utopia social sistémica infalível dirigida, de forma quase divina, por um "filósofo-rei" e seus guardiões educados exclusivamente tendo em vista o efeito pretendido; alcançar o máximo conhecimento filosófico e saber a fim de tornar-se o mais sábio e justo a governar a Cidade. Ou, talvez, alguns séculos antes, com o legislador Licurgo de Esparta em cuja constituição, nunca escrita, Platão se inspirou fortemente para conceber a sua utópica República. 

Segundo Plutarco, "Vida de Licurgo"; - A educação dos espartanos estendia-se até aos adultos: a ninguém se permitia a liberdade de viver a seu bel-prazer. A própria cidade era como um acampamento, onde se levava o género de vida prescrito pela lei, onde cada qual sabia o que devia fazer para o público, onde todos estavam compenetrados de que não pertenciam a si mesmos, mas à pátria.

Também Platão, logo, no Livro II da "República", começa a discussão acerca da educação a instituir para formatar os futuros governantes do seu sistema social, assim; - Agora, não sabes que o começo, em todas as coisas, é o que há de mais importante, particularmente para um ser jovem e delicado? Com efeito, é sobretudo nessa altura que o modelamos e que ele recebe a marca que pretendemos imprimir-lhe. 

Tão imbuído está do pensamento de poder modelar o homem que o leva à Alegoria da Caverna onde, arranja uma inventiva demonstração para provar que alguém que desde a infância, agrilhoado e obrigado a ver apenas sombras projetadas da vida real, tomará essas sombras pela própria realidade e só quando for libertado e posto perante a verdadeira luz do dia, então, verá as coisas e suas sombras reais, isto é, descobrirá a natureza de cada imagem e de que cada objeto ela é imagem, ou seja a verdade. O filósofo-rei, educado pelas ciências da aritmética e da geometria e preparado pela ginástica, pela música, astronomia e outros conhecimentos será levado a conhecer o bem quando distinguir a essência das coisas das sombras ou aparências, ou seja, a distinguir a verdade da opinião.

A imagem do filósofo-rei que transparece do guião platónico é a do próprio Platão, e muito naturalmente, pois nem antes dele ou depois dele terá havido pensador maior. Basta atentar, para se sentir o alto nível de qualidade do seu método de educação, na sua proposta de que tal ensino para formatar o filósofo-rei e os guardiões, - deve ser dado de forma isenta de constrangimentos porque o homem livre não deve aprender como escravo; logo não se deve usar de violência na educação das crianças mas que se instruam brincando.

Depois tivemos o homem chamado Jesus que o helenista Saulo de Tarso, homem do Sinédrio, depois chamado Paulo após conversão intermediada milagrosamente pelo próprio Jesus, acontecimento esse que, depois, o levaria a vida toda dedicada a elevar o dito Jesus à qualidade de um filho de Deus e Deus igual ao pai. E, com a ajuda do platonismo, conseguiu implantar uma religião vitoriosa com base na ressurreição para redimir os pecados do homem e promessa de um mundo celestial no éden após a morte para todos os crentes verdadeiros. Este modelo de base social religiosa manteve amansadas as massas populares e governou meio mundo enquanto outros modelos religiosos semelhantes governaram o outro meio mundo durante séculos, praticamente até à grande revolução francesa. E ainda hoje, não obstante seja corrente os filósofos dizerem que Deus está morto, as religiões e suas teologias inspiram fortemente os homens de poder, muito especialmente quando se unem para manter e exercer, precisamente, esse poder.      

Foram surgindo, progressivamente, filosofias, ou mais propriamente, teorias de poder, que propunham métodos sociais para controlo de poder pela imposição da força e do terror instituído e organizado. Foi o caso de Maquiavel que escreveu um manual de método de governo pelo terror para uso do Príncipe; de Hobbes e o seu todo poderoso Leviatã com poderes absolutos; de Schopenhauer e Nietzsche que haviam de ver a vontade de viver ou a vontade de poder em toda a parte. Se um criou a super-vontade para governar o outro imaginou que tal super-qualidade deveria ser creditada a um super-homem. E, claro, logo alguém pegou na ideia e se iniciou na criação da sociedade do super-homem nascido da raça pura ou da super-classe, igualmente, nascida de uma classe pura.

No fundo, a filosofia do poder da vontade e do super-homem, não foi mais que um novo tempo de forte  discussão dialética histórica sob a forma de propostas, respostas e contra-propostas acerca de modelos sociais universais para submeter e conduzir o mundo; de um lado o marxismo iniciado por Marx com os seus "Manuscritos Económico-Filosóficos" de 1844; que propunha uma classe revolucionária desprovida, explorada e impoluta para dirigir o mundo e, do outro lado, contrapunha Nietzsche uma classe de super-homens, a abarrotar de vontade para o mesmo fim, com o seu "Assim Falava Zaratrusta" de 1883.

Eram dois modelos de bases sociais e filosóficos opostos para atingir o mesmo fim; criar e instalar um Estado dotado de um poder total capaz de resolver, definitivamente, todos os problemas e convulsões sociais do tempo e havidos desde o princípio da História. E, tal como os anteriores modelos propostos ou impostos para o mesmo fim, partiam do mesmo pressuposto errado acerca da capacidade de modelar o Homem como indivíduo ou como massa humana, pela educação adequada ao fim pretendido.

Com o sucesso da educação aplicada na transmissão de conhecimentos como ensinar a ler, contar, fazer contas, escrever, desenhar, pintar, esculpir, enfim, fazer do outro alguém capaz de pensar e criar por si próprio, o homem pensante adquiriu a ideia abstrata de que também, por meio de educação adequada dirigida a um fim alvo pré-determinado, é possível doutrinar o outro ao ponto de fazê-lo pensar precisamente tal qual como pretende a doutrina, ou seja, igualizar o pensamento entre educador e aluno como se fora uma equação matemática; aqui reside o grande erro histórico, fatal, que tanto mal tem trazido ao mundo dos humanos.

O educador, ou sistema educacional, ensina ao outro o saber e conhecimento existente para que pense igual a si mas como explicar porquê, muitas vezes, o aluno ultrapassa o saber do seu mestre educador? Porque vias, então, o aluno pode ir além do seu mestre e vir a acrescentar novo ou mais conhecimento ao que aprendeu, ou até, a contestar o conhecimento que lhe foi ministrado, dizendo-o errado e propondo outro que demonstra ser mais correto?

Pois é, ou melhor, pois foi, que o educador ao ensinar conhecimentos e explicar a racionalidade desses conhecimentos desperta a inerente capacidade própria de racionalizar do aluno, a pensar sobre as matérias ensinadas e, a partir destas descobrir relações e ligações racionais com outras matérias diferentes; isto é, o aluno tornou-se, também ele um ser pensante capaz de comparar, relacionar, deduzir, concluir e avançar para a descoberta de novos conhecimentos ou melhoramento dos existentes dados pelo professor-educador; o aluno adquiriu capacidade de pensar por si próprio e poder vir a questionar o saber do próprio professor educador.

É possível que, pela educação, se consiga que uma grande massa de homens estejam de acordo acerca de uma causa comum mas, mais difícil, é todos concordarem coincidentemente sem desvio ou objeção alguma e pelas mesmas razões e impossível é que todos pensem igualmente, que todos sejam determinados por um pensamento único igual para todos como se houvesse um programador-distribuidor universal de pensamentos automáticos para cada um e cada situação de momento.

Aliás, o erro continua e subsiste na teimosia dos humanos pois continua sendo sua grande aspiração; a ideia e criação do "algoritmo" que já se aplica na determinação de muitos casos práticos da vida corrente desperta cada vez mais a atenção dos novos educadores de massas; porque sendo este mais rápido, a "pensar" e determinar-se "digitalogicamente" segundo algoritmos pré-determinados, que o ser humano,  desse modo, obtém vantagem ao pensamento humano na determinação face a decisões complexas que implicam um número tão elevado de variáveis que torna impossível o seu acesso imediato e simultâneo ao cérebro humano.

Mesmo assim subsistirá, sempre, o criador do algoritmo que poderá vir a discordar com o processo de colocar o funcionamento automático de uma máquina que age de forma invariável, mecânica, perante casos diversos de alto risco, a substituir o comportamento do homem que reage e pensa, racional, lógica e  ponderadamente sobre cada caso específico. O algoritmo age irrefletidamente segundo um histórico pré-definido que só por excepcional coincidência será sempre o mais adequado para casos diferentes além de não refletir acerca de consequências da decisão automática que toma. A decisão por algoritmo não reflete acerca da relatividade do caso nem acerca da utilidade nem acerca de finalidade e consequências. Finalmente, nem mesmo o mais complexo equipamento algorítmico colocado na escola ou na informação para formatar o nosso comportamento segundo um sentido pré-definido, jamais, alguma vez terá total sucesso sempre, pois que nenhuma corrente de ações externas pode substituir a corrente interna de pensamentos inerente à natureza de cada indivíduo. Ainda mais rapidamente do que ao longo da história universal se repetiram as  convulsões, revoluções e mudanças sociais, estas se repetirão quando uma governação por algoritmos começar a decidir, continuamente, contra a vida e liberdade das grandes massas humanas de forma percetível e estas apreendam que são manipuladas por máquinas.

A filosofia analítica de Russel e Frege, e depois com Wittgenstein, quis fazer equivaler o pensamento lógico ao processo lógico de equações matemáticas conciliando e terminando, de vez, com a discussão interminável entre física e metafísica, sensível e inteligível, contudo, outros novos pensadores viram nessa solução paradoxos que determinaram, para já, o seu abandono.

Tudo indica que a ideia de que a gestão dos homens é, também ela, uma ciência exacta é uma utopia inalcançável tal como a imortalidade. Assim como, hoje, se sabe que não há almas carregadas de experiências de outras vidas a transmigrar entre seres vivos assim saberemos, também, que nunca haverá transmigração de correntes de pensamentos entre esses mesmos seres vivos. 

Até sabemos que quando alguém, no circo, nos faz "ver" a transmissão ou adivinhação de pensamento sabemos que tal é uma ilusão e chamamos a tal pessoa, um ilusionista. 

 

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