terça-feira, maio 02, 2017

O DIREITO PENAL DO INIMIGO E CONVICÇÕES DE TRAVESTIS

  
Por José Sócrates * (Hoje no "DN")  
O direito penal do inimigo
De "especial complexidade", dizem. Bom, como discordar? Provar que a terra é plana é de especial complexidade. Provar a quadratura do círculo coloca igualmente um problema de especial complexidade. As provas no Processo Marquês são também de especial complexidade, pela razão de que é impossível provar o que nunca aconteceu.
O nosso código penal não se ocupa da especial complexidade deste tipo de verdade material: será a terra plana? Mas não se esqueceu de prever a possibilidade de haver especial complexidade em inquérito criminal - quando ela é invocada os prazos duplicam. Todavia, mesmo com especial complexidade, a lei fixa um prazo, a que chamou máximo, de inquérito (artigo 276 do Código de Processo Penal). Este prazo tem, em qualquer circunstância e englobando já todas as especiais complexidades possíveis, um limite superior de 18 meses. O Processo Marquês dura há 45 meses e acaba de ser adiado pela sexta vez.
Prazos. A primeira pergunta a fazer talvez seja esta: em que área da justiça precisamos de mais segurança e de mais certeza jurídica? Julgo que não é preciso um excessivo espírito liberal para responder que é aquela em que está em causa a liberdade - a área penal. Aí, entre o indivíduo e o Estado, só há um poderoso: o que tem o monopólio do uso da força, o que pode prender e deter... e, sei-o agora, também insultar. Parece, então, legítimo perguntar por que razão é esta a única área da justiça em que se pretende que os prazos - garantias da decência do Estado e dos direitos individuais - sejam, como dizem, indicativos? E, já agora, se são indicativos, eles indicam exatamente o quê? Mistério. Na verdade, nada indicam e nada valem porque a verdadeira intenção é justamente a de poder conduzir o inquérito sem respeitar prazo nenhum.
Prazos, de novo. Mas, afinal, porque é que estamos a discutir prazos? A resposta sabem-na todos, porque tudo isto tem decorrido à frente de todos: só estamos a discutir prazos porque o Ministério Público deteve, prendeu, promoveu ele próprio uma formidável campanha de difamação e, ao fim de quatro anos de inquérito, não apresentou nem as provas nem a acusação. Neste processo, o Ministério Público exibiu despudoradamente uma das especialidades que vem cultivando há décadas: promover covardemente - e criminosamente - campanhas de difamação nos jornais, por forma a transformar a presunção de inocência em presunção pública de culpabilidade. Não haver prazo nenhum ajuda a tal tarefa.
Prazos, ainda. Na verdade, nada disto tem que ver com nenhuma teoria da justiça ou com qualquer procura de arbitragem entre valores jurídicos de verdade material ou de direitos individuais - isto tem apenas que ver com poder. O poder do Ministério Público. Ao pretender que no inquérito penal não haja, na prática, prazos obrigatórios, o Ministério Público não está a interpretar a lei mas a mudar a lei. Acontece que essa é uma competência da Assembleia da República, não é dos senhores procuradores: esse poder não é legítimo, é usurpado.
Ouço por aí dois argumentos, ambos tão deploráveis, que não resisto a dizer, com a brevidade possível, alguma coisa sobre eles. O primeiro corre no essencial assim: bom, agora é que isto tem de ir até ao fim. Se a questão é a corrupção e a política, então tudo deve ser válido em nome desse combate, incluindo insultar, denegrir e humilhar quem está inocente. O que isto quer dizer é basicamente que, se violaram os meus direitos individuais, paciência, agora é preciso violá-los ainda um pouco mais. No fundo, a mesma e velha ideia de que os fins justificam os meios, como se a corrupção dos meios não corrompesse também os fins. O código penal que o Ministério Público está a usar no Processo Marquês não é o da República Portuguesa, mas o "código penal do inimigo." A sua lógica não é a do Estado de direito, mas a do conflito radical .
Outros dizem, piedosamente, que se deve respeitar a presunção de inocência mas que nem por isso deixam de ter as suas convicções. A presunção de inocência, portanto, como formalidade jurídica. Mas ela é muito mais do que isso, ela constitui um princípio moral estruturante das relações sociais numa comunidade decente. Os que assim procedem sabem bem o que estão a fazer e quem estão a ajudar - quem quer condenar sem julgamento e, já agora, condenar negando sequer o elementar direito a conhecer a acusação. Para isso, a inexistência de prazos é também muito conveniente.
O Processo Marquês nunca foi uma investigação a um crime, mas a perseguição a um alvo. Ele tem 45 meses de inquérito e, dizem, 32 funcionários a trabalhar, entre polícias e procuradores. Há muito que deixou de ser um inquérito para se transformar num departamento estatal de caça ao homem.
* Antigo Primeiro Ministro

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