quarta-feira, março 20, 2019

OS MODOS E AS CLASSES



"...por isso, como bem viu Nicolau de Cusa, quanto mais sabemos mais sabemos que não sabemos"

     Boaventura de Sousa Santos no seu artigo "As Três Ignorâncias contra a Democracia" in Blog "Estátua de Sal de 17.03.2019                                                 
                                                                          

Depois de considerar, e bem, que qualquer sistema de conhecimento é igualmente um sistema de desconhecimentos, cita a frase acima de Cusa acerca do saber.
Poderia ter citado Sócrates que o disse dezanove séculos antes e até fez modo de vida filosofando e interpelando gente considerada de elevado saber a quem demonstrava, segundo argumentos lógicos, que afinal não sabiam e apenas tinham uma opinião acerca do assunto o que o levava a dizer que sabia mais que eles porque ao menos ele próprio sabia que não sabia. Isto é, Sócrates reconhecia a sua própria ignorância e os outros não.
E ficar-lhe-ia melhor citar o filósofo grego porque o fazia na procura da verdade pura por meio do raciocínio lógico à descoberta sem preconceito enquanto que Nicolau de Cusa o fazia segundo um pensamento teológico para demonstrar, guiado pela obscura e ilógica via da fé, que a verdade pura só estava ao alcance divino e era o próprio seu amado Deus-Jesus.

Depois Sousa Santos considera a actualidade político-social como um conflito entre três modos de produção de ignorância:
O "Modo 1" - O mais importante que se auto-atribui o monopólio do pensamento verdadeiro e rigoroso e menosprezar todos os outros. Tudo o que está para além ou fora dele é ignorância. Será o modo arrogante que detém o monopólio do conhecimento rigoroso, científico.
Resumindo, em retratação mais directa e actual, o "Modo 1" será o que hoje é tomado pela maioria de gente escolarizada como "pensamento único" com base "científica".
O "Modo 2" - Consiste na produção colectiva de amnésia e esquecimento. O modo que atira as graves questões históricas mal resolvidas, como casos de guerras e partilhas de responsabilidades morais e políticas delas, para debaixo do tapete adormecidas quer porque a verdade era demasiado dolorosa, quer porque obrigaria a uma profunda mudança do sistema económico ou político.
O modo que não resolve nem limpa os casos de má memória deixando-os pendentes preferindo uma paz podre à justiça, a amnésia e o esquecimento à memória, à história e à dignidade. Assim, deu origem à produção de uma ignorância indolente e indiferente.
Uma ignorância retratada na actualidade pela indiferença, do não ligar ou querer saber, do deixa andar, do são todos iguais, do não vale a pena.
O "Modo 3" -  É aquele que produz ignorância por via da utilização consciente de falsidades e fake news, isto é, a voluntária produção de conhecimento falso para bloquear e adulterar a emergência de conhecimento verdadeiro a partir do qual a ignorância poderia ser superada.
Neste modo a ignorância não é um sub-produto como nos modos 1 e 2; é o próprio produto de fabricação principal e a sua razão de ser.

Estes três modus operandi produzem cada um o seu tipo de ignorância os quais interagem entre eles no interior da Democracia.            
Como no marxismo o "modo 1" representa a classe dominante das elites políticas que se impuseram desde o colonialismo e os impérios coloniais e já não conseguem pensar fora desse quadro mental mesmo quando já não há colónias nem impérios para explorar.
Que mesmo face aos modernos meios de comunicação e redes sociais cruciais na proliferação de notícias, falsas ou verdadeiras, e consequentes capacidades de reacção e convocação imediata para  repudios ou apoios e manifestações, mudam a cosmética mas nunca a origem dos males.
O povo deste modo operador de ignorância esforça-se por manter o seu produto e seu poder dominante, já muito gasto, mantendo à tona da opinião pública os valores fundadores da Democracia num "pensamento único" que, por sua vez, o tolhe de serem inovadores capazes de reinventarem novos valores nobres democráticos em prol dos povos.
Este povo, gosta e prefere o jogo democrático contudo já não o pratica com nobreza nem clareza profanando o discurso democrático com atitudes pessoais de indisfarçável assédio aos bens e cofres do Estado.
Daí a criação insistente e permanente de um "pensamento único" encobridor da realidade suja subjacente ao discurso democrático e castrador de qualquer mudança real.

A ignorância arrogante do "pensamento único" e "monopólio da verdade" do "Modo 1" facilita a proliferação da arrogância malévola produzida no "Modo 3".
Sendo este modo 3 o mais malévolo e antidemocrático de todos concentra-se numa oposição de confrontação e desacreditação total frente ao modo Democrático. A sua consciente fabricação de fake news ataca forte de sobremaneira o carácter fraco, mole, lento e indeciso na actuação democrática e nos casos fora-da-lei intrínsecos do homem vicioso e livre de terrores arbitrários.
O modo 3 é subterrâneo pois actua, ordenada e controladamente, segundo padrões de desacreditamento progressivo da Democracia e, por contraponto, faz a apologia do regime forte, autoritário, ditador e impositor da ordem pela força mas ninguém sabe ou conhece pessoal ou organizacionalmente quem verdadeiramente comanda e controla a produção de ignorância neste modo malévolo.

Quanto ao "Modo 2" produtor da ignorância indolente, nesta luta entre os modos arrogantes, não passa de um empata que desarma vastos sectores do povo para combater os dois modos de arrogância em oposição entre si.   
O povão deste Modo 2 já não acredita no "pensamento único" ou "verdade científica" arrogante e propagandeia e promove a indiferença perante o mau estado da coisa pública, isto é, reage negativamente e tende a aderir e desejar submeter-se à nova ordem prometida subreptíciamente pelo modo malévolo.

Caracterizando, segundo o marxismo, esta formação de luta entre "Modos" teríamos o modo 1 como a classe burguesa dominante, o modo 2 como a pequena burguesia e aristocracia operária serventuária da grande burguesia e seu braço executor.
A grande questão nesta luta de "Modos" proposta por BSS, um pensador de pendor marxista, é saber que classe na ordem marxista corresponde ao Modo 3, produtor malévolo de fake news.
No marxismo clássico havia a grande burguesia e o protelariado em histórico permanente confronto de classes conscientes pois que os camponeses eram irrelevantes devido à sua fraca consciência de classe.
Na tese da luta de "Modos" segundo BSS damos conta que aparece uma nova e desconhecida classe e dá-se o grande enigma do desaparecimento da classe do proletariado, a classe chave da História e mais, a profética classe do fim da História, segundo Marx.
Finalmente estarão, os pensadores marxistas, fazendo uma revisão do pensamento fundador da tese da luta de classes face aos tempos actuais do computador, da robotização, da net, das plataformas e das redes sociais?       

A tese de BSS e a sua exposição por "modos" é uma excelente quadro sinóptico, quase gráfico, de mostrar e fazer ver fundamentadamente, segundo um estilo marxista, a luta actual entre duas classes que, como sempre, disputam assanhadamente o poder.
Qualquer sistema de conhecimento produz, em contraponto, um sistema de ignorância. Ninguém nem nenhum sistema consegue abarcar todo conhecimento e todas as matérias e, se se dedica e especializa numas áreas, inevitavelmente outras ficarão mais fora e apagadas de seus conhecimentos.
Neste caso, trata-se de um conhecimento especializado na área da política e uso adequado de sua filosofia, retórica e sofística cujo desenvolvimento, estudo e aprendizagem já leva 25 séculos e continua adequando-se aos tempos.
Logo, muito pouca ignorância haverá nas classes sociais-político-económicas que lutam desalmadamente pela conquista do poder. O que haverá é uma actual adaptação das técnica de luta política face ao uso das novas tecnologias e redes sociais de comunicação relâmpago que alterou todos os modos anteriores.

Assim, a grande pretensão do "Modo 3" é desacreditar o "pensamento único" que se estabeleceu na vigência da longa duração da Democracia, sim hoje praticada com arrogante sobranceria, tudo fazendo, cometendo e manipulando para demonstrar que esta Democracia, tal como existe, já não é adequada nem o melhor meio de governação face aos novos modos de vida actual sugerindo a necessidade de outro modelo e forma de gerir a Sociedade que proclama mais eficaz e mais benéfica para as pessoas.
Contudo a grande questão talvez seja que, tendo-se a economia e o movimento de mercadorias e capitais globalizado e tudo o mais parece imparável a caminho dessa globalização, o capitalismo actual comece a sentir constrangimentos ao seu desenvolvimento segundo a ideia do neo-liberalismo.
Por outro lado as novas tecnologias digitais de comando e controlo através de redes de plataformas e redes sociais já permitem unificar, centralizar e criar um comando único universal.
E assim surgiu a grande ideia: se tudo no mundo moderno se globaliza ou vai a caminho de se globalizar totalmente também é chegada a altura de a direcção do mundo se globalizar e estabelecer um Governo Único do mundo.
Os plutocratas que estão aos comandos do "Modo 3", não dormem.        
    

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