quinta-feira, dezembro 28, 2006

MARAFAÇÕES III

A Dignidade


Naquele tempo a jovem tipo vespa obreira era o exemplo de beleza;
duas partes roliças e uma cintura de guita, ao alto uma cara bonita
e uma farta cabeleira, umas pernas gordinhas peludas, dois braços
fortes na courela e mãos habilidosas para as artes domésticas.
Ela era a exaltação da beleza daquele tempo em carne e osso,
disputada por moços pobres, ricos e remediados de olhos em seta.
Seus olhos tinham luz própria como carvões em brasa
iluminando um sorriso de sonhos felizes.
Sua juventude resplandecia atraente merecedora de futuros
radiosos, que do pouco passado vivido ela já tinha provado
o gosto amargo inscrito no precoce rosto envelhecido
de sua mãe, outrora também bela.
Sentia-se cobiçada pelo corpo e menosprezada pelos parcos
teres familiares, eternos valores dominantes da necessidade
quotidiana, mas acreditava no amor.
Atingida por Cupido, de alma lavada e pura acreditou
encantada nas palavras melosas de um vizinho e levada
pelo coração abriu confiante, as preciosas intimidades, condigna e
conformemente à primeira doce inclinação do coração.
Enganada, disse o povo quando o amor a traiu.
Desonrada, pensaram todos que tinham sonhado e sido preteridos
e, imaginando facilidades, rondaram a porta e caminhos,
na ganância de serem segundos, terceiros, quartos, ou apanhar lugar
na fila de espera de pretendentes a uma punhalada falo-pulhítica.
Enganada e desonrada pelo amor gritou ela intimamente ao coração,
enquanto a alma lhe amparava a dignidade.
Hoje soube da sua morte súbita, reclinada no seu leito, após
a ceia de Natal e uma vida inteira de luta pela sobrevivência
própria e dos seus, sempre ignorada pelo amor e esquecida por Deus.
Desprezada pelo amor dos outros, ganhou um forte amor próprio
para suportar, com nobre dignidade, a má sorte que lhe estava
reservada até hoje.
O amor enganou-a e desonrou-a, cobrindo-a de uma maldição
indespegável apesar do nobre combate que travou. Sózinha
emigrou para França para servir as madames, e serviu sem queixumes
durante anos. Voltou trazendo consigo um português bêbado
abandonado que teve de alimentar,vestir e sobretudo dar de beber,
servindo nas “villas”, “maisons” e “homes” dos estrangeiros
na sua terra, sem queixumes nem queixinhas. Tratou humanamente
do homem alcoolizado e do filho toxicodependente comprando,
ela própria, o alcool e a droga de que os seus corpos arruinados
necessitavam para sobreviver, sem queixumes nem queixinhas
nem ajudas.
Apesar de tanta resignação sem revolta, de tanto sofrimento sem
queixume, de tanto amor dado sem troco, duns olhos gastos de tanto
chorar, dum rosto coberto de rugas fundas esculpidas por lágrimas
de chumbo, a maldição do primeiro amor perseguiu-a sempre.
Nada nem ninguém lhe foi bom, nem o país pois era da pensão
francesa que vivia, nem Deus pois quando descansava
merecidamente dos duros tormentos passados, enviou-lhe a morte
após a ceia de Natal.
-Coitada, teve sempre pouca sorte-, diz o povo.
Com pouca sorte ou maldição de amor, envergou o seu farrapo humano
sempre limpo e asseado com grande dignidade e se é verdade que existe
Deus no céu, só pode ser princesa no seu reino.





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