terça-feira, maio 23, 2017

A GRANDE INGRATIDÃO


Portugal tem um problema grande consigo próprio. Um problema geneticamente português, grave e pernicioso, que afecta todo o povo português como comunidade pensante. Um pecado original cultural-mental geral que marca a nossa individualidade como povo.
Portugal tem um fundador da nacionalidade histórica e pessoalmente bem identificado como o primeiro e maior autor dessa obra grandiosa e única que foi a conquista da independência. Contudo esse primeiro grande homem português fundador de Portugal não é reconhecido como o grande herói e pai da Pátria segundo um critério histórico comum consagrado nos países do mundo.
No imaginário colectivo do povo português não existe fundador da Pátria e muito menos uma mitologia heróica dessa conquista que nos enraize o orgulho e amor patriótico. Pelo contrário, a destemida e valorosa fundação da Nação, quando não é atribuída aos acasos históricos da altura, como se qualquer acto histórico vitorioso não fosse obra de homens capazes de entender os ventos ocasionais favoráveis do momento, é atribuída "graças ao valente, medíocre, tenaz, brutal e pérfido carácter de D. Afonso Henriques", segundo Oliveira Martins.
Este autor ainda mimoseia o nosso fundador como alguém que "não tinha a nobreza do leão, nem a astúcia ferina do tigre: possuía apenas a tenacidade brava e bronca do javali". Por outro lado, não podendo iludir o facto do seu notável conseguimento diz que "o moço príncipe reunia as condições necessárias para consolidar uma independência até aí precária" e "era audaz e temerário até" ao ponto que "nem a grandeza das empresas o assustava". E continua "a estes dotes militares reunia outros não menos valiosos, na precária situação em que se apossara do reino".
Oliveira Martins paradoxal, ao mesmo tempo que exalta os caractéres de bravura, astúcia, coragem e temeridade (mestre acabado na arte de enganar e na arte de combater) rebaixa as qualidades militares (mau general) e inteligência (nenhum pensamento poético enchia a sua cabeça, estreita, e inteiramente ocupada pela ideia fixa de consolidar a sua independência) do fundador e ainda, simultânea e contraditoriamente, salienta a vontade lúcida e indómita de Afonso Henriques querer ser independente e Rei, de facto e de jure, tal qual como foram o avô, o primo e era o genro na altura.
No meio de todo este fazer e desfazer entre o grande e o estreito, entre a heroicidade e a astúcia, ainda nos vem contar a lenda da maldição lançada por Teresa sobre o filho que a pusera encarcerada a qual se teria cumprido em Badajoz, ultimo acto falhado de conquista contra Leão já depois de Afonso Henriques ter ludibriado o primo rei de Leão acerca do tratado de Zamora concebendo um subtil e ardiloso jogo com o papa Alexandre III que lhe deu o titulo de Rei em definitivo.
Desta contraditória amálgama histórica que as nossa elites nos deixaram contadas acerca da nossa fundação nasceu a deprimente anti-patriótica mitologia acerca do "rei que bateu na mãe e assaltava castelos de faca nos dentes e escada às costas". 
Passados quase mil anos e ainda é esta desgraçada mitologia que sobrevive e se mantém viva entre o povo e que a elite não tem a coragem de contrariar. Deste modo, além do D.Sebastião beatamente vencido e encoberto que há-de chegar numa manhã de nevoeiro, há o nosso fundador D. Afonso Henriques vencedor astuto e valeroso que, embora fundador da nacionalidade, nunca chegou a chegar. 
Quem chegou e lhe ocupou o lugar foi D. João I na Praça da Figueira, D. Pedro IV na Praça do Rossio, D. José I na Praça do Comércio e o Marquês na Praça de Pombal.   

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