segunda-feira, março 25, 2019

PROCESSO JUDICIAL DE JESUS NAZARENO (TOMO I) SEGUDO VALÉRIO BEXIGA

Tarefa ciclópica esta a que se dedicou durante anos o Valério Bexiga, advogado de pão incerto mas trabalho incansável como é prova este imenso trabalho de pesquisa acerca deste "Processo" tão controversamente divino como pouco histórico.
E não podia deixar de ser controverso assim como ambíguo pois trata-se, nem mais nem menos, do que o impensável julgamento de um homem que afinal era Deus. Só esta ideia inimaginável, para nós mortais habituados a ter Deus como um absoluto omnipresente invisível e omnipotente intocável, de que afinal um Deus foi homem que andou entre os outros homens, conviveu comeu e bebeu com eles e até foi julgado, condenado e crucificado por homens mortais de poderes mundanos, nos deixa perplexos e confusos.
Como é dito na introdução deste Tomo I "Reforma de Autos" é a expressão técnico-jurídica para significar a reconstituição das peças de um processo judicial perdido.    
Ora o autor levou o seu cuidado a uma exaustiva e minuciosa investigação de todas as fontes históricas existentes contrapondo-as entre si e vasculhou para consulta as opiniões de muitos e exigentes autores, quer críticos quer apologistas, que ao longo dos tempos já se dedicaram exegeticamente ao estudo deste misterioso processo que consagra como Deus alguém nascido homem igual aos homens do seu tempo.
Todos os autores citados neste livro escalpe sobre Jesus assim como os não citados referem, uns mais outros menos, os assuntos aqui tratados contudo nenhum como este escalpeliza os textos históricos e os canónicos sob tantos critérios de múltipla confirmação e refutação numa persistente e teimosa procura na detectação dos "restauros", "cortes e remendos", "adulterações", "interpolações", "amputações"e novas "formatações e adquações" como se os fosse peneirando uma e outra vez sem conta com rede cada vez mais fina num processo de depuração até restar o texto considerado origem inicial inscrito no rolo de papiro.
O exemplo paradigmático deste médodo de depuração extra-fina dos textos pós cristianização paulina de Jesus é o documento "Testemonium Flavianum" deixado pelo historiador do povo judeu Flávio Josefo, nascido sete anos após a crucificação de Jesus, com o qual o autor, dada a validade testemunhal histórica do texto, se debruça esmiuçadamente durante 151 páginas deste Tomo I.
Todos os exegetas críticos lógicos deste "processo", de errância e trasladância de Jesus-homem terreno até Jesus-Cristo no céu como Deus, são concordantes nos temas aqui tratados pelo autor e citam esses temas ambíguos e contraditórios usando os mesmos ou outros argumentos aqui citados.
Assim Teixeira de Pascoais, no seu livro "São Paulo", como apologista poético deste apóstolo mas também um helenista ferrenho diz dele que "Amou um ideal até o integrar na Existência, não como simples criatura humana, mas como Deus" e que "A paixão é sempre criadora. Quando não gera um filho, gera um espectro, um Deus" e ainda que "No apóstolo, a ideia platónica abrasou-o em amor divino.
Este autor pura e simplesmente omite qualquer vida pessoal e prática corrente de Jesus e enaltece poética e eloquentemente o helenista Saúlo de Tarso e sua mutação para São Paulo principal figura dos criadores do cristianismo. Isto é, considera integralmente o cristianismo como uma criação inventiva do génio místico de São Paulo no qual a vida e trajecto de Jesus pregador potencia o uso do engenho e arte missionária e epistolar de Paulo para urdir a sua teologia cristológica.
O autor defende a tese psicológica de que toda a actuação vigorosa e obcecadamente crente de Paulo é uma vontade visionária de reparação face ao seu remorso por ter chefiado, à ordem do Sinédrio, a lapidação de Estevão, primeiro mártir do cristianismo.
E, quem sabe, Saúlo não estaria entre "os concidadãos mais importantes" que denunciaram jesus e assistiram ao seu julgamento como acusadores? 
Frederico Lourenço credenciado helenista actual e tradutor da "Bíblia Grega", a partir directamente do original grego, em seis Tomos (quatro já publicados), Biblia essa, segundo este autor, cuja leitura serviu ao judeu Jesus para citar, pela mão dos evangelista, a Escritura judaica e a Paulo, profundo conhecedor desta Bíblia, construir a sua teologia e que foi a primeira Bíblia das primitivas comunidades cristãs, na sua introdução aos quatro Evangelhos canónicos explica:
- Que sobre esses quatro textos falta-nos saber, ainda hoje, quase tudo; quem os escreveu, onde, a ordem temporal de sua escritura e se os evangelistas conheciam os trabalhos dos colegas.
- Que os evangelhos ditos sinópticos são extraordinariamente semelhantes e apresentam Jesus como um profecta apocalíptico com pudor de ser apontado como Filho de Deus ou como Ungido (Cristo) e, ao contrário, em o Evangelho de João Jesus assume publicamente a sua natureza divina; "Eu e o Pai somos um".
- Que nenhum dos autores dos evangelhos assinala precisamente a data de nascimento e da crucificação de Jesus nem a sua idade nesta data e que, pelos dados históricos mencionados por Flávio Josefo, todas as previsões de datas retiradas dos evangelhos são incompatíveis com as previsões retiradas dos dados históricos.
Também o local de nascimento de Jesus se em Nazaré ou Belém é contraditória entre Mateus e os outros evangelistas.
- Que apresentar a vida de Jesus como cumprindo a cada passo profecias que ocorreram na Escritura judaica é a mais assumida opção autoexegética que condiciona fortemente o ponto de vista segundo o qual os quatro evangelhos são narrados. Os acontecimentos da vida de Jesus são vistos através desta lente que podemos considerar transfiguradora, mas também deturpadora. 
- Que os evangelhos canónicos ou se contradizem ou uns dizem e outros omitem, a partir da correcta tradução do grego, nas questões da virgindade de Maria, dos irmãos de Jesus, do local de nascimento, do carrego da cruz, do que disse Jesus na cruz, da insólita interrogação de Jesus por Herodes, da lavagem dos pés dos discípulos na Última Ceia, e também no que toca ao túmulo e quem o viu vazio primeiro e à ressurreição de Jesus onde em Mateus duas Marias são informadas por um anjo e depois veem Jesus em pessoa e falam com Ele enquanto em João tudo acontece de moto totalmente diverso e onde apenas aparece Maria Madalena.
Madalena é o verdadeiro denominador comum dos quatro relatos sobre a visão do túmulo vazio e em João é ela que primeiro vê o túmulo vazio e perante o seu choro vê Jesus ressuscitado e sem saber quem é, fala com Ele.
- Que um relato, acerca de quem viu primeiro o túmulo vazio, seja assim tão divergente entre evangelhos é inescapável pois, quando temos quatro relatos que não coincidem sobre determinada realidade, somos impedidos pela lógica mais básica de aceitar que os quatro possam ser simultâneamente verídicos.
Roger Garaudy no seu livro "Será que precisamos de Deus?"começa assim: "Não pode ser escrita uma vida de Jesus porque não há qualquer relato seu nos Evangelhos. As testemunhas autores dos sinópticos, não se pretendiam cronistas ou historiadores, mas sim pregadores empenhados na "edificação" de uma comunidade. o que lhes importa, nos acontecimentos na vida de Jesus, não são os factos mas o seu sentido".
Este autor considera que os Evangelhos (últimas redacções e resultado de redacções intermédias) foram escritos entre os anos 64 (Marcos), anos 80-90 (Mateus e Lucas), fim do Séc. I (João) e, consequentemente, após as epístolas de São Paulo aos Tessalonicenses (ano 50) e as epístolas aos Coríntios, Gálatas e Romanos (ano 57, Paulo em Éfeso) e por fim a epístola a Filémom (anos 61-63, Paulo cativo em Roma).
Ora os autores dos Sinópticos, segundo os Actos,  foram todos eles colaboradores próximos de Paulo que não podiam deixar de ter acesso e conhecer as suas epístolas e seu pensamento.
Assim ao contrário do que se poderia crer quando se lê os Evangelhos na sua ordem tradicional, Paulo não é um comentador dos Sinópticos porquanto a sua obra é-lhes anterior. Muito pelo contrário, a obra de Paulo é uma das fontes teológicas dos Evangelhos. Os Evangelhos não serão a única fonte pois subsistiam fortes tradições locais e os autores Sinópticos testemunhos oculares das palavras e actos de Jesus ou de compilações escritas que circulavam em Jerusalém após a morte de Jesus.
Para Paulo, que não conheceu Jesus em vida e por isso não evoca a sua fase humana assim como os seus actos e palavras, no centro da sua reflexão e teologia (a primeira teologia cristã) está a "Ressurreição" que ele interpreta como uma manifestação do poder do Deus do Antigo Testamento, e como concretização das promessas feitas a Israel.
Deste modo os Evangelhos, na medida em que se misturam recordações pessoais e as interpretações teológicas de Paulo, levaram a reconstruir a vida de Jesus a partir de um mosaico de profecias do Antigo Testamento, a ponto de ele dizer; O que vos digo não é mais do que aquilo que os Profetas e Moisés disseram que ia acontecer.  
Depois Garaudy, no seu livro, desenvolve as posições teológicas de Paulo que não são de todo dissemelhantes do judeismo do Antigo Testamento no que diz respeito às mulheres, à descendência de David, ao servo sofredor, à ressurreição e obediência cega pela fé (em Moisés era perante a Lei divina) como redentora dos pecados e demais questões e contradições ajuizadas de modo lógico como tratados no livro que nos trouxe aqui.
Em Régis Debrey no livro "Deus, um itinerário" o autor começa por interrogar-se do porquê do atraso da chegada do Eterno face à existência humana:
"A atmosfera tem milhares de milhões de anos; a nossa maquinaria cerebral , milhões; o Etermo, milhares", e continua "no nosso Livro Sagrado (a rapsódia de interpolações a que os tradutores de Alexandria, ditos Setenta, por totalizarem esse número, chamaram "os livros" (bibblion, em grego) os anos contam-se às centenas. Como podemos ver, as escalas do tempo lá de cima e cá de baixo estão tão desfasadas que, para nossa tranquilidade, a relação entre um calendário e o outro ultrapassa a imaginação.   
Sobre a vida histórica de Jesus limita-se a referir: "Quanto aos olhares romanos duas linhas de Suetónio, dez de Tácito, uma página de Plínio, a sua carta a Trajano. E remata: "Nos pequenos círculos de convencidos, no local, demasiada empatia. Do lado da burocracia imperial, demasiada antipatia" e ainda " Flávio José com as suas 'Antiguidades Judaicas' representa um ponto intermédio mais fiável mas as suas alusões a Jesus passam por interpolações duvidosas".
Este autor seguindo os demais críticos lógicos de que a cristianização de Jesus é uma contrafacção histórica resume tal afirmando que  "A cronologia é o argumento de autoridade por excelência, o meio mais eficaz de subordinar os recém-chegados ou os antigos, assim reputados pelas necessidades impostas pela causa".
Quer isto dizer que a História que fica é a contada pelos vencedores e que uma vez contada à posteriori à distancia de décadas ou séculos será sempre, inevitavelmente, ficcionada por tradições, invenções e adaptações de forma a dar colorido de feito épico-heróico ou santo-misterioso aos textos.
Valério Bexiga, logo na sua introdução a este Tomo I pergunta: Quem foi o personagem da Alta Antiguidade tomado como filho de um Deus e de uma virgem mortal nascido em uma gruta ou manjedoura?
E responde: Foi o sincrético Deus pagão Osíris/Dionísio que, dimanando de divindades imemoriais, veio a patronar na hoste divina dos antigos panteões, respectivamente, egípcio e grego.
Teixeira de Pascoaes confirma esta ideia ao afirmar na sua apologia de São Paulo: O Paganismo foi um banquete ao som de flautas e avenas, com as rosas da Primavera, coroando a fronte dos convivas. O Cristianismo é a Ceia, o corpo e o sangue de Jesus, repartido no pão e no vinho.
E remata: A embriaguez dionisíaca deu o misticismo cristão: Da uva báquica saiu o vinho eucarístico.
O Cristianismo é a conclusão do Paganismo; ou este é a primeira fase daquele.

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