quinta-feira, março 08, 2007

GORJEIOS VI

PRIMAVERA

Regressado ontem à noite de alguns dias em Lisboa, hoje de manhâ com o magnífico solinho quente algarvio, ao sair de casa uma andorinha voava veloz ao longo da estrada rente ao alcatrão. Aqui no campo basta o vôo silencioso de seta de uma andorinha para fazer sentir a chegada da Primavera e nos acordar o olhar para as plantas e árvores cheias de novas promessas de flôres e frutos. As abelhas afinam e limpam a tromba sugadora e as mulheres preparam e limpam os tachos para as favas e ervilhas que rebentam no quintal. Apesar das maldades que o homem lhe prega, a Natureza vai equilibrando quimicamente os bens do céu e da terra que nos mantem vivos de modo tão simples, tão envolvente e tão à vista que quase não damos por isso. E na cidade muito menos que no campo.
Em Lisboa, para mais na zona histórica, só damos pela alteração do estado do tempo de duas maneiras: quando chove ou faz sol. Para o lisboeta o estado de chuva é o pior que lhe pode acontecer; andar a correr de guarda chuva, esperas nas paragens à chuva, cheias nos túneis e ruas, poças nos passeios, atrasos nos transportes, acidentes nas avenidas, circulares, saídas, com as correspondentes horas dentro do carro parado. Para o lisboeta a chuva só é boa sob a forma de chuveiro na hora do duche. A expressão exemplar desse sentimento dá-a o locutor de serviço de televisão ao interpretar a meteorologia que, seja qual fôr e estação fôr, esteja o país em seca terrível, estejam as albufeiras vazias, diz sempre quando o tempo é de chuva: "amanhã teremos mau tempo com muitas nuvens e chuvas fortes". Pelo contrário, mesmo que seja mais sol e calor sobre a seca, ele dirá sempre: "continuação de muito sol e bom tempo para amanhã".
Claro que o lisboeta passa o tempo fechado em casa e no escritório, rodeado de prédios e ruas, onde não há espaço para a Natureza para além da sua própria. E esta, por força de viver fechada sobre si alimenta uma consciência individualista, tornar-se-á egoísta ao ponto de desejar apenas o que é bom para o seu bem estar e comodidades pessoais. E como tem tudo à mão nas lojas, armazéns, praças, supermercados e centros comerciais, independentemente do tempo que faça, para ele o melhor é fazer sempre bom tempo, isto é; sol, porque a chuva só lhe atrapalha a vida.
O citadino, e por razão de sua grandeza o lisboeta, que já tem tudo à mão tambem gostaria de ter o tempo que gosta e lhe facilita a vida. A natureza do camponês quer sol na eira e chuva no nabal mas a natureza do citadino quer sol no trabalho e sol no passeio ao campo e praia.
Pela minha parte concedo-lhes o sol sempre na cidade tal como desejam, mas deixem continuar tal como ainda se dá, o ciclo natural de sol e chuva sobre o campo para poder contemplar a sagração florida da Primavera no seu tempo próprio e ir ver, quando queira e à vontade, a beleza que o homem pôs na cidade.

Etiquetas: