segunda-feira, abril 23, 2007

MARAFAÇÕES XVIII

DIA DO LIVRO

Andar para cá e para lá na rua com um livro debaixo do braço é um fino sinal social mas também fazer o mesmo com um cão de marca é igualmente fino. Ter em casa uma grande montra com livros ou ter um caniche bem tratado é um sinal de quem está a par da civilização da boa consciência social. Contudo, enquanto o "dia do livro" é aceite com respeito e circunspecção, o "dia do cão" proposto por um nosso ilustre deputado foi mal aceite e ridicularizado. Talvez porque a escrita e o livro representem a história da caminhada humana para a liberdade através da força do pensamento, e nesse sentido é a grande lição libertária, enquanto o cão fechado num andar ou sob trela represente o pensamento primitivo do domínio da força, e nesse sentido a negra lição da servidão.
A ideia de livro está associada à vontade de difusão de uma mensagem e deste modo podemos dizer que os primeiros livros foram de pedra com as suas incrições lapidares. Sucederam-lhe a escrita na madeira, na argila(cuneiforme), folhas de palmeira, couro e peles de animais, e por fim o papiro com os egipcios e o pergaminho na época helenística. A adopção e melhoramento do alfabeto fenício pelos gregos onde se cruzavam os conhecimentos das civilizações avançadas egipcias e do médio oriente fez que estes se predispozessem a interrogar-se a si próprios e a natureza e sobretudo deixar registado em livro o trabalho das suas investigações racionalistas. Foi há cerca de três mil anos, que sobre suporte papiro de tão difícil manuseamento, se escreveram as obras consideradas fundamentais e suporte de toda a civilização ocidental. Depois na época helenística deu-se o desenvolvimento da difusão do livro através da criação de
grandes bibliotecas nomedamente as de Alexandria, o Museion e o Serapeion, e mais tarde a de Constantinopla, onde se copiavam os livros para divulgação dos textos originais. Estes grandes centros de conhecimento foram posteriormente destruidos, queimados, etc., ao sabor das guerras e censuras religiosas e deste modo perderam-se todos os manuscritos dos autores antigos e o que resta dos seus textos é uma ínfima parte do que escreveram.
O aparecimento do papel no Ocidente em meados do século XIV e da tipografia por Gutenberg um século depois multiplicou a produção e expansão do livro por toda a Europa em pouco tempo. O livro iria tornar-se rápidamente um bem acessível às universidades e escolas e também aos particulares e hoje em dia acessível a qualquer pessoa com gosto pela leitura. Mas hoje em dia a produção de livros, revistas, jornais, televisão. etc., não tem a preocupação antiga de servir de transmissão de conhecimento para produzir mais conhecimento mas sim a de ser um objecto de grande consumo para satisfação da curiosidade mexeriqueira e gerar obscurantismo e lucros rápidos.
Por isso é preciso voltar de novo aos clássicos, é preciso estudar as traduções cada vez mais fiéis ao pensamento original dado o cruzamento de dados novos com os antigos e face à análise do pensamento antigo feita à luz da crítica moderna. A nossa civilização assenta nesse pensamento antigo mesmo quando sob a forma religiosa, por isso para percebermos bem o que se diz e escreve hoje é indispensável conhecer os seus fundamentos, sem o qual fácilmente nos venderão gato por lebre.
Como na matemática, se não apreendermos todos os passos necessários que levam à compreensão de equacionar jamais resolveremos problemas, também na escrita se não conhecermos os passos da evolução do pensamento fundador, jamais perceberemos com capacidade crítica a escrita actual.

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