quarta-feira, dezembro 24, 2008

UMA HISTÓRIA GORJONENSE II




A DIGNIDADE*

Naquele tempo a jovem tipo vespa obreira era o exemplo de beleza; duas partes carnudas roliças e uma cintura de guita, ao alto uma cara rosada bonita plantada de olhos grados luzentes e pestanudos, uma farta cabeleira preta brilhante, umas pernas gordinhas peludas, dois braços
fortes na courela, na cozinha, no poço e mãos habilidosas para as artes domésticas.

Ela era a exaltação da beleza daquele tempo em carne e osso, disputada por moços pobres, ricos e remediados de olhos em seta. Seus olhos tinham luz própria como carvões em brasa iluminando um sorriso de sonhos felizes. Sua juventude resplandecia atraente merecedora de futuros radiosos, que do pouco passado vivido ela já tinha provado o gosto amargo inscrito no precoce rosto envelhecido de sua mãe, outrora também bela. Era bela e furtiva, pois sentia-se cobiçada pelo corpo e menosprezada pelos parcos teres familiares, eternos valores dominantes da necessidade quotidiana, mas acreditava no amor.


Atingida por Cupido, de alma lavada e pura acreditou encantada nas palavras melosas de um vizinho e levada pelo coração abriu confiante, as preciosas intimidades, condigna e conformemente à primeira doce inclinação do coração. Enganada, disse o povo quando o amor a traiu. Desonrada, pensaram todos que tinham sonhado e sido preteridos e, imaginando facilidades, rondaram a porta e caminhos, na ganância machista de serem segundos, terceiros, quartos, ou apanhar lugar na fila de espera de pretendentes a mais uma punhalada no preciso lugar do amor que já derramara o sangue e o semen sem frutificar.
Abandonada, enganada e desonrada pelo amor gritou ela intimamente ao coração, enquanto a alma lhe amparava a dignidade.

Hoje soube da sua morte súbita, reclinada no seu leito, após a ceia de Natal e uma vida inteira de luta pela sobrevivência própria e dos seus, sempre ignorada pelo amor e esquecida por Deus. Desprezada pelo amor dos outros, ganhou um dorido mas enaltecido amor próprio para suportar estóica e docemente, com ínclita dignidade, a catástrofe de sofrimentos que a vida madrasta e má sorte lhe destinara injustamente.


O amor enganou-a e desonrou-a, cobrindo-a de uma maldição indespegável da sua sina apesar do nobre combate que travou. Sózinha emigrou para França para servir as madames, e serviu sem queixumes durante anos. Voltou trazendo consigo um português bêbado abandonado que teve de alimentar, vestir e sobretudo dar de beber, servindo nas “villas”, “maisons” e “homes” dos estrangeiros na sua terra, sem lamentações nem queixinhas. Tratou humana e abnegada e exemplarmente do homem alcoolizado e do filho toxico-dependente comprando, ela própria, o alcool e a droga de que os seus corpos arruinados necessitavam para sobreviver, sob ameaças de morte e pancada de cão, sem lamúrias, azias de coração ou imprecações.

Apesar de tanta resignação sem revolta, de tanto sofrimento sem consolo, de tanto amor dado sem troco, duns olhos gastos de tanto chorar, dum rosto coberto de rugas fundas esculpidas por lágrimas de chumbo, a maldição do primeiro amor perseguiu-a sempre. Nada nem ninguém lhe foi bom, nem o país pois era da pensão francesa que vivia, nem do Absolutamente Bondoso e Omnipotente pois quando descansava merecidamente dos duros e injustos tormentos passados, enviou-lhe a morte após a ceia de Natal.

"Coitada, teve sempre pouca sorte", diz o povo. Com pouca sorte ou maldição de amor, envergou o seu farrapo humano sempre limpo e asseado com ímpar dignidade e se é verdade que existe Deus no céu, só pode ser princesa no seu reino.


* Texto escrito faz dois anos pela morte da Freitas.

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2 Comments:

Blogger Diogo Sousa said...

Numa palavra.Soberbo.bem haja quem assim tao bem trancreve a desgraca alheia.Fa-lo-na sentila.
DCS

12:38 da tarde  
Blogger josé neves said...

Amigo Diogo Sousa,
Tão real que posso informar que dos pretendentes que rondaram a casa na tentativa de também "assaltarem" a porta da intimidade do amor desta mulher infeliz,um deles era um dos chamados "Arrabolas" ou "Rabolas" do Patacão que davam nas vistas e impressionavam as "montanheiras" bonitas do campo, montados em belas motos cheias de cromados reluzentes e barulhentas que faziam espanto.

5:34 da manhã  

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