sexta-feira, maio 22, 2009

UMA HISTÓRIA GORJONENSE IV

A CAMIONETE DE CARGA
Em 22 de Dezembro de 1937, um aluno do "Posto de Ensino" dos Gorjões, escola para o ensino até à 3ª classe, no seu caderno de linhas para escrita, deixou a marca do seu olhar sobre o progresso do seu tempo, desenhando com apurado sentido de observação e muito jeito e gosto para representar o invulgar, o nunca anteriormente visto, e que certamente o impressionara fortemente ao ponto de o levar a representar o seu espanto através do seu traço engenhoso e imaginação artística .

A "Prova de Desenho" do aluno CCB, marca um tempo de grande mudança tecnológica local: o princípio da substituição das corroças puxadas por animais, desde as pedreiras nos matos até ao coração da cidade de Faro. Nesta perspicaz representação de um aluno ainda garoto, nenhum pormenor foi esquecido e até o titulo " A camionete de carga", tem um significado que simboliza, precisamente, uma mudança tecnológica que implica uma mudança de linguagem: foi assim chamada porque era destinada a transportar "uma carga" e já não uma "carrada" como era disignada a carga da carroça. E para provar a verdade do título evidenciou a carga a transbordar de grossos pedregulhos carregados à mão.

Ao olho observador aguçado do CCB, impressionou-o os pormenores que dão forma e representatividade àquela "máquina" que ele observou impressionado e, tal como um caricaturista salienta os traços característicos de um rosto ele fez salientar os traços que achou caracterizadores da camionete de carga. Assim não lhe escapou a grella do motor, a manivela de arranque do motor (de pôr a trabalar), das rodas ainda com raios ao estilo das bicicletas, da tampa do radiador de água e até do "chofer" no interior da "gabine".
Resultado, a camioneta de carga do moço Capitolino Contreiras Barros com cerca de dez anos, adquiriu movimento, no encontro do nosso olhar com tal figuração, vimos uma camionete carregada a rodar sobre o papel de escrita calmamente a caminho da obra em construção. A camionete de carga do Capitolino não está; vai andando.

Mais tarde, tinha eu cerca de metade da idade dele quando fez esta prova escolar de desenho, via-o abalar do Alto com o Alfredo, fardados de tropas soldados, de bicicleta e bolsa às costas para o quartel em Faro. Muito garoto, impresssionava-me aquela farda cinzenta de flanela grossa, plainas de cabedal grosso e bivaque esquisito na cabeça, e achava-os pessoas importantes. Não o seriam ainda, mas pelo exemplo de uma vida de trabalho duro e limpo, honestinade de carácter e verticalidade de comportamentos face à riqueza, ambição ou inveja, foram pessoas muito apreciadas e respeitadas por todos e nesse sentido pessoas importantes: as que contam e ajudam a formar o carácter e identidade dum pequeno povoado. O Capitolino, a quem tanto o impressionou a camionete de carga e a carregou de grossas pedras na sua representação escolar, por isso ou porque a realidade económica aqui, nos Gorjões, ainda passava pelas pedreiras, canteiros e construção de estradas, construiu a realidade de toda a sua dura vida de trabalho, junto das pedras enquanto pôde.

Quem diria que agora estava aqui a recordá-lo, ainda através dum meio relacionado com as pedras, mas sobretudo pelas suas capacidades artísticas, agora reveladas. Se fosse hoje, talvez o sítio tivesse ganho um artista para figurar e perpectuar o panteão da nossa memória colectiva local.

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