segunda-feira, junho 18, 2018

A "QUESTÃO BORDEIRENSE": UMA TESE (1)


Platão esteve continuamente encerrado num dilema acerca da "alma".
Na sua juventude adoptou, sem dúvidas, a posição dos órficos: o homem é composto de um corpo e uma alma. E como também não é um composto dos dois resta que o homem nada é ou, se é alguma coisa, não é mais que uma alma.
Ainda na juventude, face à velha ideia grega da prática saudável no uso do "ginásio", que defendia uma "mente sã em corpo são" propõe que "não se deve procurar a cura do corpo sem procurar a cura da alma". Platão hesita acerca do estatuto da alma colocada entre o sensível e o inteligível e questionado acerca da possibilidade; "E se a alma não fosse imortal?" e apenas a "harmonia do corpo" responde que não será apenas uma harmonia do corpo mas a causa que o faz viver e cuja função é pensar o que exige nela a presença do inteligível.
E a hesitação acerca do que é verdadeiramente a alma permanece sempre e não pode dizer-se que Platão ou alguém tenha alguma vez sabido exactamente o que é a alma.  
E se a alma fosse uma "tradição"?    
Em Bordeira, as novas gerações, com fundamento no valor e obra dos seus "antigos" desenvolveram "um modo de ser e estar" entre si e em comunidade que foi construindo um pensamento identitário e, por fim, tomado como uma tradição. Tradição que foi evoluíndo até ganhar contornos de carácter e valores individualistas que passaram a ser cantados nas suas manifestações culturais como únicas e personalizadas "filhas da tradição" e que chegaram à 2ª geração de tradicionalistas sob a forma actual de um bairrismo exagerado que aqui apelido de "questão bordeirense".
Como amigo militante da "Velha Guarda" bordeirense tenho acompanhado a evolução tendencial, no mesmo sentido sempre, e reparado que à medida que as novas gerações se afastam, no tempo e conhecimento, da origem da tradição mais se radicalizam e encerram nas suas muralhas e torres únicas incomparáveis, mas imaginárias.
Hoje em dia, em qualquer manifestação cultural popular em Bordeira, é quase uma ideia fixa a exaltação da mensagem forte, primeira e única de que "Bordeira é que é e nada mais". Ideia facilmente apreendida pelo ouvinte atento e, pelo tom e premissas que conduzem a tal afirmação, como uma proposta de total exclusão de qualquer outro ou outrém estranho ao território que confere o ser bordeirense  pois, tal afirmação, seu sentido e modo de uso significa, precisamente, que Bordeira é que é e nada mais (é).
Alguma tradição charoleira bordeirense descobriu o aplauso e adesão fácil do seu povo a tal ideia e deu o pontapé de saída na pessoa dos seus "começadores" improvisadores de quadras dedicadas à época de Ano Novo e dia de Reis e derivantes para a crítica social ou de costumes. O povo gosta de ter motivos de orgulho dos quais se sente parte e aplaude gostosamente porque se sente incluído no elogio proclamado e enfatizado. A repetição, ao modo de slogan, criou uma espécie de "refrão" cantado que se foi tornando um pensamento dominante quase automático e, necessariamente, altamente redutor de outros pensamentos mais elevados, mais sociais e universais.
Isto nota-se imediatamente na nova geração de poetas populares bordeirenses que, segundo tenho ouvido, não conseguem sair desse modelo limitado, limitando a sua poesia aos valores considerados únicos e locais que enaltecem a cada verso e cada quadra, quase esquecendo tudo o que é a tragicomédia humana da vida inclusive os imortais ódios e amores carnais da paixão e procriação em detrimento da total dedicação dos amores à "tradição".
O mesmo se passa em relação às gerações de juventude e juvenis locais a quem tal modelo é, na retórica prática dos costumes, transmitido com tal ênfase que os miúdos, reunidos em nome da terra e sua representação, quase só sabem abrir a boca para proclamar a "tradição" reduzindo o seu universo de pensamento e capacidades intelectuais a uma ideia fixa que, no seu imaginário, lhes foi implantada como aquela que é acima de tudo e, por conseguinte, é a mais valiosa, a única, o belo, o bem, enfim o irredutível absoluto.
E ao absoluto tudo que se lhe acrescente ou retire em nada o altera.

(continua)

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