segunda-feira, dezembro 20, 2021

ACTA & CTA; "UM GAJO NUNCA MAIS É A MESMA COISA", NOTAS.

A certa altura do decorrer da peça o velho "Alferes" diz: - qualquer dia já não há ninguém para contar  como foi... -.

É verdade. É uma verdade que esconde uma mentira; a questão é porque razão nunca ninguém foi ouvir e entrevistar os Oficiais Comandantes operacionais da guerra, os Capitães, Alferes, Sargentos, Furriéis e Praças que viveram juntos dia a dia a guerra no mato com os seus Soldados e seus problemas. Pelo contrário, sempre os escritores e artistas se basearam em relatos específicos contados em 2ª ou 3ª pessoa já adulterados pelos preconceitos culturais ou ideológicos individuais de cada contador.

Por exemplo, Artur Agostinho quando enviado como repórter da RTP para cobrir a tomada de Nambuangongo queria estar lá antes das tropas para relatar a chegada; dada a evidente impossibilidade de tal e face ao grande medo, para si, que era seguir embebido numa das duas colunas que se dirigiam rapidamente para a tomada daquela importante base do inimigo resolveu, de acordo com sua cultura de habitual e popular relator futebolístico, descrever para os ouvintes, a tomada de Nambuangongo como um despique futebolístico Benfica - Sporting. E deixou tal registado em livro como seu estúpido troféu de guerra.

Também a mensagem deste texto e encenação de "Um gajo nunca mais é a mesma coisa" está juncado de preconceitos; desde logo do preconceituoso ponto de vista criado e fomentado pela elite dos "exilistas", os que se exilaram em Paris, Estocolmo, Roma e outras capitais europeias. Quando a narradora falaciosa inglesa "jornalista?", "socióloga?" ou simplesmente "revolucionária?" pergunta; - e vocês foram assim para a morte e não fizeram nada? -, está completa e intencionalmente a ocultar a situação política e social em Portugal naquele tempo; a obrigatoriedade imposta pela ditadura, a pobreza das famílias das aldeias e seus filhos aldeões quase totalmente analfabetizados sem os mínimos recursos financeiros e apoios fora do seu ambiente familiar, sem passaporte nem condições de obtê-lo e sob o horror do medo oculto de represálias sociais exercidas pela polícia política sobre a família. 

Ainda assim, muitos rapazes pobres filhos dos primeiros emigrantes a "salto" para França seguiram as pisadas dos pais ou familiares e arriscaram tudo abandonando a farda no dia do embarque e fugir para a Guarda afim de passar a fronteira a salto com destino a França, não para se dirigir a um hotel e esplanadas dos cafés parisienses mas sim, para se dirigir ao "bidonville" e ao trabalho duro no "bâtiment", como foi o caso do Juvenal em 12 de Julho de 1964. Mas estes fugiam primeiro da miséria e depois do acréscimo de miséria que a guerra lhes acrescentava às suas vidas; fugiam daquela miséria portuguesa característica que tanto impressionara horrivelmente a fina sensibilidade da jovem revolucionária inglesa quando viajava com o namorado do Porto para Lisboa. 

Também quando o "Alferes", que nunca mais foi o mesmo, se refere aos militares que no "Cu de Judas" ou seja, isolados do mundo no meio do mato durante longo tempo e sempre sob forte tensão emocional por estarem permanentemente cercados do inimigo e sujeitos a ataques constantes, dava-lhes o "badagaio" moral e sobretudo psico-mental está a contar a guerra pelo falso prisma do médico Lobo Antunes que distorceu totalmente a verdade sob a forma de uma ficcão literária quase paranoica para seu gozo pessoal; qualquer Unidade Militar nessa situação não estava mais de 5-6 meses sem ser rendida. Mas se tal se passou com o Dr. Lobo Antunes, ou outro médico, são deles a maior responsabilidade por tal se ter passado e com tal severidade; eu estive por duas vezes numa situação dessas, contudo, o nosso Ten. Mil. médico Dr. João Alves Pimenta estava atento e tratava do caso de modo a alterar a situação clínica desses homens abatidos, "em baixo": sempre atento, mal detectava sintomas de tal fazia uma inspecção médica e aos homens em estado de mal-estar mental mandava-os de férias clínicas uns dias para Luanda, que eles já conheciam bem, e vinham de lá mais prontos para suportar de novo mais algum tempo de isolamento, perigos e intempéries.

A guerra também são as pessoas e as suas circunstâncias; a pessoa do nosso médico, face às terríveis circunstâncias, não as podendo alterar contornava-as com escapatórias possíveis; assim, sempre atento na protecção da melhor saúde e bem-estar dos soldados nunca deixou que tais males tomassem conta dos homens sob seu controlo clínico; nenhum elemento do nosso Esquadrão foi repatriado ou embarcou em Luanda de regresso com problemas psicológicas; nem pela vida fora no meio da selva humana da vida civil houve algum caso de "velhote despassarado"; pelo contrário, como lhes dizia o Dr. Pimenta nas nossas confraternizações anuais, a guerra tinha-os tornado mais fortes, mais conscientes e melhor preparados para suportar os trabalhos duros na selva humana da vida civil.

Sem querer, a encenação dá duas verdadeiras imagens da guerra colonial, precisamente, quando nos quer dar a entender de princípio ao fim, que a nossa guerra colonial foi uma bestialidade de matanças de pretos cometidas por soldados portugueses. Primeiro, quando é encenada com fortes e ruidosas luzes, sons de metralha e helicóptero, uma confrontação terrível entre as duas tropas inimigas e, depois,  passado o terrível confronto, vê-se apenas no palco o "Alferes" ferido e do inimigo não se vê nem mortos nem feridos, nada. Ora esta situação foi, que eu vi, a mais corrente naquela guerra de guerrilha e no meu tempo; talvez tenha sido caso único mas eu nunca vi um "terrorista" morto ou ferido no entanto vi cinco mortos e dezenas de feridos do meu lado.     

Segunda situação dá-se quando os nossos soldados em formatura respondem "à chamada" e só depois de muitos  "presente" chega o momento de ficarem engasgados e calados perante o nome de um não presente, isto é, de um morto. Significam estas duas situações que quer do lado dos portugueses quer do lado inimigo as baixas foram imensamente menores do que os relatos jornalísticos, revisteiros, livrescos, cinematográficos e agora também teatrais, dão a entender e dramatizam por questões comerciais ou ideológicas.

Também a ideia feita de imensos massacres cometidos pelas tropas coloniais é falaciosa como o prova a fala da jovem inglesa quando menciona os massacres de Nambuangongo, Wiriamu e outro que não fixei o nome. Ora em Nambuangongo, posso afirmar eu que participei nessa operação, não houve qualquer massacre nem podia haver dado que as populações nativas tinham todas fugido para esconderijos na mata impenetrável para nós; terá havido sim algum tipo de massacre inicialmente nessa região como resposta enlouquecida ao massacre da UPA de 15 de Março de 1961. E, este massacre, causa principal do início da guerra colonial, cometido pelo inimigo terá sido mais brutal e numeroso em vidas humanas que todos os outros cometidos pelas nossas tropas depois; contudo nunca tal horrível cometimento é referido para não sujar a ideia que se pretende fazer passar de que os soldados portugueses combatentes foram todos uns criminosos de tal modo ferozes e obscenos que agora são todos "Alferes" velhotes passados dos cornos ou taralhoucos pós-traumáticos.

E o que dizer da revolucionária inglesa que diz ter falado com muitos "velhotes" combatentes e daí retirou a certeza de que todos esses antigos soldados, hoje em dia, são racistas reaccionários que votam na extrema direita? Teve o desplante de perguntar a dois combatentes presentes que eram de direita e logo ali concluiu reiteradamente que, hoje em dia, são todos fascistas mesmo quando antes eram revolucionários e votavam comunista. Como pode saber e ter tanta certeza a inglesa revolucionária que todos os antigos soldados combatentes são fascistas? Terá ela o condão de ver um Mussollini  desenhado na testa de cada combatente da guerra colonial? Haverá assim tanto fascista por cá e, contudo, após a democracia, ainda nenhum partido de raiz fascista ganhou eleições e governou o país?

A revolucionária inglesa, que faz uma espécie de papel de compère que está sempre em palco narrando o texto e marcando o ritmo da encenação, faz lembrar aquelas jovens revolucionárias que vieram da Europa universitário-revolucionária, logo após o 25A, ensinar a fazer a revolução aos portugueses. Claro, passada a festa revolucionária e instalada a democracia, voltaram para as esplanadas de Paris a tomar o seu cafezinho e ler Marx, Sartre e Althusser com mais atenção para na próxima não falharem.

A ideia que constitui a mensagem central da peça encenada é fazer passar o preconceito de que todos os soldados combatentes andaram e passaram todo o tempo a matar pretos na guerra colonial; são todos, hoje, uns velhos maus, fascistas, racistas, porcos e desdentados como, não só se dá a entender em toda a fala da observadora inglesa ao longo da peça como até o declara aberta e ostensivamente. 

A rapariga observadora inglesa funciona na peça como a voz do "argumento de autoridade"; à boa maneira subserviente portuguesa foi preciso chamar uma autoridade "lá de fora" em matéria de guerra de guerrilha para explicar académica e autoritariamente ao Zé o que foi a nossa guerra colonial "sem papas na língua e sem espinhas". Fala ela de massacres mas saberá ela como conseguiram os seus ascendentes ingleses vitorianos conquistar o maior império já visto sob o céu? Pensará que foram armados de gaitas-de-foles e encantaram os nativos da Índia, América, Astráulia, África do Sul, Médio Oriente, o mar e recheio de navios que o cruzavam e até o Rochedo de Gibraltar?    

O preconceito fica inscrito no texto e também na encenação desde logo quando o assunto se centra numa história humana particular comovente. Mesmo quando fundamentamos textos e opiniões em estatísticas e dados rigorosos acerca de um assunto de ilimitada subjectividade e complexidade nunca conseguimos captar a verdade nem seque a melhor verdade acerca desse assunto; o mais provável é que nos faça ferver o sangue, deixemos cair uma lágrima furtiva e gerar em nós uma falsa certeza moral.         

É o que nos acontece quando pensamos acerca da relação entre nós e o inimigo relativamente à guerra colonial. Retrata-se esta a partir de casos muito particulares para, emocionalmente, extrairmos ideias gerais fixas erradas e preconceituosas. Por exemplo, se alguém que esteve na guerra, teve experiência de baixas havidas em algumas Companhias ou Batalhões, pensar racionalmente e fizer simples contas aritméticas rapidamente chega à conclusão que, o mais provável, foi que houve mais mortos nas nossas tropas do que nas do inimigo. Ora se assim foi, como se pode dar a entender ou até formular e afirmar como verdade certa que todos os soldados portugueses são assassinos que andaram todo o tempo de guerra a matar "pretos"?

Explica-se tal, exactamente, porque nunca ninguém foi falar seriamente com quem andou a comer a ração de combate untada de pó das picadas; antes pelo contrário, apenas ouvem e lêem as ficcções livrescas de quem por lá andou a escrever cartas choramingas de saudades pela mulher esquecendo-se que os soldados também tinham mulher, filhos e pais que choravam e rezavam por eles nos confins de aldeias remotas.       

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