quarta-feira, dezembro 17, 2014

MEMÓRIA, CAMPO DE FORÇAS MENTAIS.

Todos somos perseguidos pelas nossas origens; eu não trocaria todas as paisagens do mundo pelas da minha infância.
Por isso, mesmo não pensado nem planeado, inadvertidamente e depois de passadas décadas na grande cidade, damos connosco de volta aos pequenos povoados de nossas origens. É como se um campo de forças mentais provocasse uma atração irreprimível da vontade no regresso ao passado mítico para voltar a restabelecer a original ligação umbilical pré-existente, assim tal como a Ideia platónica.
Quando o futuro começa a escassear a vida presente é ocupada pela memória e esta, por amor de sobrevivência, tende a sobrevalorizar o que foi belo e feliz e até a considerar que os males passados foram um contributo-guia necessário para nos conduzir ao bem e felicidade que obtivemos. É, provavelmente, esta doce mentalidade que adquirimos sobre o passado que produz o tal campo de forças mentais que nos atrai irresistivelmente para as origens. 
Uma ordem transcendental da mente faz-nos voltar. E reencontramos os antigos lugares com paisagens que facilmente reconhecemos e nos lembram as de infância, contudo, notamos nostálgicos, que sendo as mesmas são diferentes, que sendo os mesmos lugares e espaços a paisagem é outra.
Realmente, as paisagens de infância já não existem mais, apenas estão arquivadas nas felicidades míticas sepultadas vivas na nossa memória.
Vamos ver e, visitamos os lugares e encontramos casas que foram cheias de vidas e de vida de amores, filhos, falas, gritos, choros, risos, festa e alegrias, que são vestígios de ruínas em silêncios espalhados em pedras caídas lembrando símbolos de lápides tumulares. Noutros lugares, em vez das velhas casas familiares a abarrotar de gente, terras lavradas e semeadas e árvores limpas e tratadas, encontramos modernas mansões de estrangeiros rodeadas de piscinas, jardim e mato virgem à volta.
Vamos ver e, visitamos os antigos caminhos de pedras e cabras e vemos, nuns casos caminhos tratados e abertos revestidos a  tapetes de alcatrão e noutros, caminhos tapados de mato e erva que foram abandonados e estão intransitáveis: já não há moradores nem as casas onde iam dar.
Vamos ver e, visitamos o povoado e damos conta que das várias casas abertas ao público só existe a velha mercearia e taberna e, completamente restauradas em pequeno marché  e café de vila. As casas abertas de Mestres Artesãos como o barbeiro, sapateiro, albardeiro, carpinteiro, ferreiro, ferrador, mecânico de bicicletas e funileiro que constituíam o centro comercial do povo com fabrico ao vivo e feira de alegria dos moços e moças não meninos, fecharam e desapareceram por imprestabilidade tal como os caminhos abandonados.
Vamos ver e, visitamos os poços públicos abandonados sem sinal de vida ou alegria, outrora repletos de bulício e sons das carroças e bestas com cangalhas e cântaros, baldes e funis, ferraduras e chocalhos que, em uníssono com as falas de homens e mulheres e o cantar da água tirada a baldes, faziam do local dos poços uma festa de alegria e boa disposição para encontros de amores, remédio santo para cura dos trabalhos duros do campo.
Vamos ver e, vemos e sentimos que as cores e cheiros dos matos, terras e árvores abandonadas são diferentes das enterradas vivas na nossa memória de moços, que os pintassilgos e outros magníficos cantores do alto dos galhos das árvores desapareceram, que os vizinhos já não se juntam à noite para passar o serão à volta da braseira contando contos aos pequeninos, conversando e catando pulgas, que todos hoje vivem fechados em casa frente ao altar da santa televisão ou fechados no automóvel ambulante correndo estradas atrás de novidades da publicidade.   
Vamos ver e, vemos e sentimos que nada já é o que fora na nossa infância e apesar de aparentemente quase tudo se parecer mais com a vida e costumes da cidade que deixámos, ainda assim o tal campo de forças com epicentro na memória nos atrai irreprimivelmente e algumas vezes já vi, velhos emigrantes que abalaram jovens, chorarem lágrimas profundas e pesadas como os pedregulhos caídos à vista a seus pés, junto das casas e campos em ruinas onde nasceram ou brincaram na infância.
Lá do alto o Sol ilumina todos para, num só golpe de vista, todos ver quando nascem, crescem, brincam e trabalham mas cada um ser que nasce é do seu Lugar único que vê e sente o Sol e a Luz, o tempo e o espaço, a casa e o campo, gatinha e brinca pela primeira vez em toda sua existência.
Esse Lugar único onde pela primeira vez abrimos os sentidos e ligámonos aos pensamentos nenhum exorcismo o pode arrancar da nossa vida mental.
E quiçá, na hora derradeira, quem sabe, o seu pensamento último não vai para o lugar onde pela primeira vez existiu e, logo pensou.  

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