domingo, setembro 20, 2020

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Morte à inteligência, viva a idiotice.

Hoje em dia de quatro grandes países-potência duas vivem sob o domínio da idiotice e outras duas sob o domínio da inteligência, contudo, ambas as quatro usam e abusam quer da idiotice quer da inteligência para enganar e impor um mundo falso e antidemocrático. Era suposto que a democracia ensinasse e se fortalecesse criando democratas e as ditaduras pelo uso e mau exemplo do jugo da tirania elevasse a consciência democrata e o amor à democracia; no entanto tudo parece estar acontecendo ao inverso da lógica tradicional aplicável.

Estamos falando, claro, por um lado, dos USA e Brasil governados, segundo o conhecimento actual, por gente de qualidade idiota, por outro lado, falamos da China e da Rússia governados, segundo o mesmo conhecimento actual, por gente de qualidade pouco recomendável mas inteligente. Mas, desconcertante, é pensarmos que os idiotas chegaram ao poder democraticamente e os inteligentes por meio das estruturas rígidas do aparelho burocrático do partido único e opinião unanimista vigiada: Como explicar tal facto, racionalmente, contraditório?

Pela simples leitura corrente de qualquer manual de História da Filosofia ou História da Ciência sabemos que foi a inteligência superior de alguns homens que sempre questionou o saber existente acumulado e, com base nele e partindo dele, estudou, analisou, detectou contradições, colocou questões sob novos pontos de vista e ora em pequenos passos ora a passos largos propôs alterações que, umas vezes, acrescentaram mais saber ao saber existente e, outra vezes, criaram mesmo novos saberes e conhecimentos que revolucionaram o nosso entendimento do mundo, já não só do mundo material visível palpável como do mundo cósmico ou microcósmico.

A inteligência foi sempre o fundamental motor de accionamento e avanço da civilização humana. Mesmo a reacção e retardamento temporal que também sempre houve contra o avanço da filosofia e sobretudo, da tentativa histórica de travar e imobilizar a moral e a ciência, para além dos casos de imposição pela força bruta absolutista de tiranos foi, muitas vezes consequência de uma oposição feita inteligentemente por homens também sábios. 

Foi o caso da Idade Media que sob a perspectiva religiosa do cristianismo vencedor, homens inteligentes, quiseram perpectuar os valores morais e científicos acreditados pela Igreja. Assim também os casos actuais da China e Rússia, países dirigidos autocraticamente por homens inteligentes, e tal como o Papa eleitos entre pares, que dirigem os seus países com mão de ferro tendo como fim principal uma direcção política dirigida para a expansão da grandeza própria usando de exibições e imposições de ordem militar ou comercial. Nestes casos, com dirigentes seguidores de uma ideologia para a acção sem contestação e assento permanente no poder, pelo recurso a meios autoritários, é possível e compreensível o aparecimento de homens inteligentes e competentes para os propósitos que se propõem realizar.      

Mas como entender e menos ainda explicar porquê em pleno Séc.XXI, tempo de massificação de escolaridade e universidade para todos se dê o fenómeno contraditório de povos letrados elegerem, de livre escolha democraticamente, pessoas notória e claramente idiotas para seus chefes dirigentes máximos e responsabilidades máximas perante os povos próprios e todos os outros povos do mundo? Por que preconceitos ou juízos do pensamento sobre a vida prática leva a que povos de centenas de milhões de cabeças pensantes não se inquietem à partida com a possibilidade de ficar submetidos a um idiota seja qual for a sua especialidade em matéria de idiotice?

Bernard Williams, 1929-2003, elabora a sua crítica filosófica na base de que a sociedade moderna é uma sociedade de reflexão e questionamento permanente tal como iniciada por Sócrates na Ágora ateniense. Desde então, a partir de Aristóteles, criaram-se várias teorias éticas e actualmente pontificaria uma teoria à imitação de uma teoria científica cujo fim último é conferir ás proposições éticas o estatuto de verdades lógico-matemáticas, absolutas e necessárias; promete juízos éticos com o grau de certeza das ciências exactas. Uma destas teorias é o utilitarismo que tende a quantificar a experiência e o bem humanos e resolver pelo cálculo problemas de mais valia do bem integrado, isto é, os célebres estudos, exigidos na política sem visão social, de "custos e benefícios" da era cavaquista.

Por outro lado, os valores das acções éticas estão profundamente enraizados num sistema de "crenças" complexo de ordem religiosa, costumes, tradições, etc. que constituem o cimento do que é o "mundo da vida" corrente. Este sistema de crenças torna os valores éticos óbvios pelo que a dúvida ou a crítica dessas crenças podem pôr em causa o dito sistema enraizado de crenças para, pela reflexão, procurar novos valores de conduta ética. Esta nova reflexão pode destruir o conhecimento ético e fazer com que o niilismo seja um perigo à própria actividade de pensar. Ao interrogar e pôr em causa todo o tipo de crenças éticas, religiosas, culturais, cosmológicas, etc., a reflexão abala o "mundo social", ou seja,  o mundo da vida corrente.

Para Williams, a modernidade está mais ameaçada por este perigo porque, nela, a prática da reflexão se difundiu e massificou a toda a sociedade. Num sistema de crenças estilhaçado em fragmentos pela reflexão o efeito corrosivo sobre o conhecimento ético pode, no limite, destruir esse conhecimento, contudo, suprimir essa reflexão seria um caminho para o desastre e a surtos de irracionalidade perigosa, em particular no plano político. 

Mas o que a sociedade moderna actual tenta fazer a todo o custo é, precisamente, não suprimir a reflexão o que é uma impossibilidade mas transformá-la quanto possível dedicada apenas na procura de construir e induzir na comunidade um sistema de valores económico-consumista-utilitarista ou entretenimento como substituto da reflexão filosófica socrática. A sociedade moderna usa massivamente os meios de comunicação de massa digitais para ocupar permanentemente qualquer tempo livre disponível para o pensamento reflexivo ao mesmo tempo que inviabiliza a reflexão de grupo que permita a criação e transmissão de conhecimento valioso por via dialéctica. A sociedade moderna cria e induz no auditório o pensamento conveniente e vende-o como uma papa viciosa que torna ávidos por ela o consumidor viciado tal qual o cão de Pavlov. Deixa de haver individualidades e apenas pessoas consumidoras que já não reflectem acerca de valores mas sobre propaganda também esta transformada em produto de consumo de massas. 

Ora como é sabido a propaganda não cultiva valores éticos nem cria sistemas éticos de crenças que cimentem a comunidade com prescrições de valores morais de conduta. A propaganda publicitária impinge na comunidade uma mistela de meias-verdades, mentiras, invenções, deturpações, interpretações, indicações, falsas proposições lógicas e todo um mundo escrito e visual imaginativo pleno de falsidades e irrealidades de modo a construir e formatar "cabeças" de pensares dirigidos contra os alvos pretendidos.

As comunidades de sociedade de consumo e lazer, do facilitismo de Estado, do Estado Providência, da fartura sem trabalho, do cidadão amparado ou apaparicado pelo Estado, isto é, dos que "tem tudo à mão" porque tudo lhes vem parar à mão sem o correspondente sacrifício de o obter, estilhaçado e fragmentado o tecido unificador que era o sistema de crenças éticas existente que definiam comportamentos morais-sociais ficou perdida, confusa e à deriva num mundo que tem horror ao vazio e não o consente necessariamente. Consequentemente tal vazio foi rapidamente preenchido pela oferta consumista veiculada pela propaganda-publicidade que apropriando-se do vicio consumidor induzido nas massas populares pôde pensar, com propriedade, que podia vender um Presidente qualquer como vendia uma qualquer marca de sabonete. 

Logo, tal ideia, pareceu uma arrogância sem medida, megalómana e desmiolada, contudo, passadas apenas duas décadas as condições materiais da informação digitalizada e através desta os meios de obter informação dos hábitos, gostos e preferências dos consumidores viciados-massificados tornaram viável a ideia, inicialmente absurda,  de que é possível vender Presidentes.

Os casos Trump e Bolsonaro aí estão para comprovar que se a ideia era uma provocação na altura é, hoje em dia, uma gigantesca preocupação sob o céu.

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