segunda-feira, outubro 12, 2020

ENTENDER O ÓBVIO!

Numa caixa de comentários de blog acerca da actualidade das presidenciais americanas argumentei que Biden seria sempre um mal menor dado o seu longo passado de moderado político face à irracionalidade  e irresponsabilidade demonstrada por Trump nestes quatro anos.   

Um outro habitual comentarista que afirma que quer um quer outro, quer republicanos quer democratas, são tudo o mesmo acusou-me que estava a considerá-lo apoiante de Trump e que estava "tentando assim amedrontar e silenciar os críticos" e continuou; "Não encontro para o que escreveste interpretação diferente da que lhe dei e, por amedrontar e silenciar os críticos entendo, obviamente, levá-los a recear que as críticas que eventualmente possam fazer ao Biden sejam automaticamente equiparadas a apoio ao Trump, daí resultando que, para não serem acusados de apoiar algo ou alguém por quem sentem profundo desafecto e repugnância, metam a viola no saco e fiquem calados, assim contribuindo para a impunidade e inimputabilidade de Biden." 

ACERCA DO ÓBVIO 

O óbvio tem sido para a filosofia e ciência um dos maiores problemas desde as suas origens. A noção de óbvio é-nos dada pela observação prática dos sentidos e estes, como deduziram os gregos antigos através do pensamento puro a partir da observação elaborada, nos enganam e induzem em erros muitas vezes.  

Com Pitágoras o conhecimento matemático parecia certo, exacto e aplicável ao mundo real com a vantagem de se poder obter por pensamento puro sem necessidade de observação. Com base nesta experiência pitagórica supôs-se o pensamento superior aos sentidos, a intuição à observação. Mas o próprio Pitágoras chegara ás suas conclusões óbvias por meio da geometria.

Veio Heráclito dizer de sua observação que ninguém se banhava duas vezes no mesmo rio dado as águas fluírem e mudarem incessantemente e daí, pelo pensamento puro, deduziu a teoria do fluxo ou mudança permanente do mundo sensível. Também pela observação do quente e frio, do alto e baixo, do caminho que é o mesmo a subir ou a descer, analisada pelo puro pensamento, deduziu a teoria da harmonia dos contrários; neste caso com a particularidade muito especial, sob o ponto de vista do observador,  de nos mostrar que  o mesmo que era uma coisa também era o seu contrário desde que trocássemos de ponto de observação.

Contudo, os gregos antigos, eram de um pensamento tão irrequieto quanto lógico e audaz nas suas inquietações e proposições acerca do sensível e do inteligível no homem que, enquanto Heráclito afirmava que tudo estava em mudança, surgiu Parménides a contrapor que nada mudava e tudo era uno e imutável e que todas as percepções dos sentidos eram aparências.

E não esqueçamos Sócrates que questionava o povo ilustrado grego para conhecer melhor a natureza humana a fim de deduzir um método capaz de tornar o homem melhor e, afinal, observou que nenhum sabia mais que ele donde concluiu que era ele o mais sábio porque sabia que não sabia enquanto os outros nem isso sabiam.

Em todos estes casos o óbvio ou evidente na discussão das ideias (excepto na matemática ou geometria), embora logicamente fundamentado, foi continuamente contestado, questionado com críticas igualmente fundamentadas e novas ideias que ou mudaram ou acrescentaram mais ao já conhecido. 

O paradigma do erro histórico acerca do “óbvio” foi a questão coperniana do heliocentrismo  nada óbvio face ao geocentrismo tão óbvio como a vulgata do “está-se mesmo a ver”. Questão, só resolvida, depois da condenação à fogueira de Copérnico e prisão de Galileu que precisou cientificamente com o telescópio que éramos nós quem girava à volta do Sol e não o contrário.

Também a recente reunião histórica dos quatro estarolas nos Açores pretendeu fazer-nos crer com documentação e argumentação que era óbvio a existência de armas de destruição maciça no Iraque de Sadam e, após uma invasão militar e milhares de mortos,  constatou-se que era um propositada falsa óbviedade.

Compreende-se que na observação prática se considere como óbvio aquilo que vimos o que é e como é, e até aplicamos os outros sentidos para comprovar que é mesmo o que pensamos ser; é o "óbvio" bíblico de S.Tomé, ver para crer. No mundo dos factos e coisas sensíveis este "óbvio" da observação prática faz sentido, contudo, no mundo das ideias, e mais ainda, na interpretação das ideias de outrem qual o sentido de detectar uma intenção "óbvia" tão imprópria porquanto tal intenção não é mencionada nem indiciada nas entrelinhas sequer?

Na própria formatação literal "entender, obviamente" há uma ideia confusa do que se quer explicar pois o entender algo já pressupõe que tal algo se fez óbvio na mente do entendedor. Mas a confusão maior, a trapalhada mental em estado bruto começa quando o outro se imagina no nosso lugar (se eu fosse ele...), isto é, faz uma inversão de papéis, e começa a deduzir o que eu pensaria ou faria no lugar dele, naquele caso concreto. Claro tal método é um completo engano manifesto porque duas individualiadades só podem trocar de lugar ou posições sob o aspecto físico e jamais trocar mentalidades um com o outro; o pensar-se no lugar do outro é possível, é um problema de imaginação, contudo, a inteligência, o conhecimento, a mentalidade, a racionalidade e capacidade de pensar logicamente são únicas e permanecem sempre no mesmo indivíduo; o pensar de cada um é impenetrável e, obviamente, introcável. 

Consequentemente, o que o comentarista entendeu, obviamente, do meu texto foi uma interpretação de sua imaginação fértil. E fértil porque, sobretudo, já fortemente fertilizada por leituras e vídeos de críticas severas a Biden e aos democratas para, aqui sim, provavelmente, favorecerem o Trump pela mensagem subreptícia de que, afinal, são todos iguais e ao menos o novo é franco, diz ao que vem e sabe o que quer.

Claro que neste caso, para o meu comentarista o uso de, "entendo, obviamente" é uma figura de estilo de quem não liga, ou liga pouco, aos conceitos dos juízos de valor ou de verdade que emite e que, pelo contrário, está apanhado e pensa, usa, escreve, fala sobretudo por fortes preconceitos; o que realmente ele leu em mim foi um verdadeiro catálogo dos seus próprios preconceitos.

O "óbvio" à primeira vista é, precisamente, o que deve suscitar a primeira dúvida.

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