sábado, fevereiro 06, 2021

DEMOCRACIA E FALSOS DEMOCRATAS

 

Certamente muitos ainda estão lembrados daqueles meses recentes em que os ingleses debatiam acaloradamente no Parlamento a questão do "Brexit"; saída ou não da UE. Foram dias e meses, demitiu-se uma 1ª ministra e seguiu-se Boris Jonhson e no Parlamento continuavam argumentos e contra argumentos, moções e contra moções tácticas dos grupos parlamentares na defesa do sim e do não; foram debates acesos de exposições e opiniões fundamentadas quer contra quer a favor que concentrou a atenção do mundo, especialmente dos países da UE, sobre esses debates de posições que, mais que contraditórias, se opunham.

E, certamente, também se lembram do imenso falatório de opiniões de anedota, de chacota, depreciativos, ridículos com risos e risadas à vez da nossa imprensa e jornalismo comentador encartado que, depois de largar umas baboseiras comuns  terminava, invariavelmente assim: - pois se os próprios não sabem o que querem como podemos saber e dizer nós o que realmente pretendem eles -; chegados aqui a jornalista interlocutora apreciava a resposta e ria-se babada de aprovação com a saída falaciosa do comentador. Foi isto continuamente e cada vez mais com opiniões mais ignorantes e depreciativas sobre os "palermas" ingleses que "não sabiam o que queriam"; e assim estava salva a honra xico-esperta do jornalismo português. De notar que a sua resposta quase invariável de dizer -se eles não sabem como podemos nós saber- revela linearmente o que é a sabedoria da nossa imprensa opinativa; só sabem dizer acerca do mundo aquilo que o mundo já disse sobre si mesmo. 

Os restos da aristocracia intelectual comentadeira faziam coro e até acentuavam esta qualidade de "doidos" dos ingleses e em especial Miguel Sousa Tavares que chamou à 1ª ministra inglesa uma "ema" que, dizia ele, era uma ave tonta que nem sabe correr nem para onde corre. A sua recente proposta de um governo de "Salvação Nacional" de iniciativa presidencial que podia incluir alguns ministros do governo actual sem dar uma razão uma do porquê de tal governo denota o grau, não de idiotice, mas de anti-democrata cheio de manha política em defesa dos seus pequenos interesses e poderes de andar a mamar à grande em volta dos media que o acolhem como grande senhor porque é grande servidor dos donos, embora o disfarce.

É, precisamente, este tipo de jornalismo anti-democrático praticado pelos jornalistas, comentadores e opinadores da nossa praça mediática que prevalece na opinião pública de tanto lhe ser inoculada em doses maciças diariamente. Eles fingiam não entender que a discussão no parlamento inglês acerca do Brexit era a demonstração prática pura do uso e costume da democracia mais antiga da era moderna que conquistara há mais de três séculos esse direito à primazia do Parlamento por meio de discussão parlamentar impondo a sua decisão ao Rei contra sua régia vontade de absolutismo. Eles fingiam não entender que uma questão tão importante para um povo como a perda de soberania com a integração defendida por uns, ou tomar conta integral de sua soberania com a saída da UE defendida por outros, é sempre uma questão de grandeza nacional tão maior quanto esse país se orgulha do passado glorioso do seu povo. E fingiam não por desconhecimento do profundo simbolismo democrático representado e condensado naquele parlamento inglês e naquele momento alto de exemplo prático do que deve ser uma democracia em sua plena função; a discussão de ideias em total liberdade individual. Eles fingiam por força do hábito rotineiro de não saber pensar para além dos seus interesses próximos mais mesquinhos; isto é, porque são falsos democratas sujeitos a servidões de senhores.

Também notamos sua falsidade democrática em duas situações práticas; a primeira quando se refugiam no absolutismo dos princípios democráticos para tecerem críticas a tomadas de posição obrigatórias sob pena de expirar o prazo dado ou quando se agarram aos princípios puros acerca de tomadas de decisão pragmáticas que não podem ser proteladas por arrastarem outras questões importantes; a segunda, que deriva da primeira, dá-se precisamente quando entrincheirados nos valores absolutos dos princípios democráticos fazem disso uma desenfreada discussão política global cujo valor real é produzir uma guerra de ruído de jogos de palavras de forma a tornar-se incompreensível para a maioria das pessoas comuns o que as faz crer que a democracia é uma guerreia permanente entre grupos, desacreditando-a, propositadamente, em favor de soluções de autoritarismo anti-democrático.

Na ditadura há duas opções; ou se está com a dita ou contra a dita e, neste caso, já somos perseguidos pelo delito de opinião. Na democracia tenta-se que todas as ideias individuais se possam expressar livremente e reunir-se em grupo ideológico ou partidos. Esta abertura a todos os pensamentos e ideias que são origem de acção e movimentação política é, simultâneamente, a força e a fraqueza da democracia; é a sua força porque vai no sentido da discussão dialéctica histórica da civilização; é sua fraqueza porque nela se albergam os saudosistas dum passado primitivo imaginado paradisíaco que os leva a defenderem não só o imobilismo como o regresso a esse passado mítico de paraíso perdido.

A democracia é a única representação política que, à sua escala de comunidade local, representa essa  discussão dialéctica histórica que nos trouxe da idade primitiva até hoje. E quem não compreende isto anda baralhado acerca de ideologias sob princípios de liberdade e utopias de todos os tipos com  promessas de liberdades absolutas futuras.

Enquadra-se nesta questão um senhor Freitas que andou pelos USA, pela China, pela Europa, enfim, que percorreu o mundo civilizado à procura do mundo dos seus sonhos e nunca o encontrou pois conclui que;  «O comunismo demonstrou os limites da sua ideologia, desorientado por déspotas sem escrúpulos que lucraram com a credulidade dos cidadãos democráticos.
O capitalismo precisa destes mesmos cidadãos para salvar um sistema que não funciona.
Portanto, é o fracasso de duas ideologias.»

É um erro pensar que as ideologias ou as suas ideia fundamentais desaparecem ou morrem e o exemplo prático actual é precisamente o estado chinês que se desenvolve rapidamente sob um sistema misto de ditadura comunista impondo um capitalismo de estado selvagem. A vida do mundo não pára e obriga a que continue dirigido pelas ideias dominantes mas a discussão dessas ideias também não pára pelo que a dialéctica histórica da civilização continuará paralelamente. Mesmo quando as ideias se tornam entrave do progresso civilizacional e são postas de lado elas ainda assim são objecto de saudosistas retrógrados ou são fundamento para reprodução de novas ideias; a história das ideias (da filosofia) ensina-nos que é assim.

O erro grave dos homens deve-se à sua ambição ingénua de querer obter em tempo de sua vida o que idealiza e, ambicioso, julga-se capaz disso porque em sua vida pessoal conseguiu o que idealizou para si. Contudo uma coisa é idealizar e conseguir no seu pequeno mundo pessoal o que queria e outra idealizar, propor-se e conseguir transformar o mundo globalmente actuando sobre múltiplas tradições e crenças seculares enraizadas, irreprimíveis e imutáveis de repente; nem a linha contínua da vida dos homens pode sofrer rupturas abruptas e depois, mais tarde, continuar deixando um lapso de descontinuidade para recomeçar algures segundo uma trajectória planeada previamente.
A realidade do mundo da vida é indiferente ao indivíduo nem se rege por sonhos individuais particulares não obstante o homem sobre a terra possa sonhar transformar o mundo sob o céu mas nunca o fará só por si e  repentinamente como pensam muitos opinadores repentistas e até pensaram todos os filósofos sistémicos até hoje.
E ainda bem.

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