O IIL EM "BUENOS AIRES, TEMPOS DE PAIXÃO"
Trata-se de um relato ficcionado das lutas estudantis dos anos sessenta visto pelo olhar de um dirigente da ADAIIL, Associação Desportiva dos Alunos do Instituto Industrial de Lisboa que fazia 30 anos em 1964 e tinha renascido das cinzas em 1961. O IIL funcionava desde 1916 num velho e maltratado palacete dos Viscondes dos Olivais na Rua de Buenos Aires que liga a Estrela à Lapa em Lisboa. O título do livro deriva diretamente dessa situação geográfica que ligava muito fortemente a Escola de milhares de estudantes de Engenharia à sua respectiva localização e morada naquela rua nomeada de Buenos Aires.
O tempo e accão descrita no livro é toda ela passada nos últimos anos do salazarismo obscurantista e depois sob a "abertura" marcelista que afinal se tornara, pura e simplesmente, a continuação da política anti-democrática anterior revestida de alguma linguagem de eufemística liberal sem liberalidade alguma.
O narrador da história ficcionada é o João que, torna-se óbvio ao longo do texto, se confunde com o autor da narrativa. Trata-se de um aluno, filho oriundo do mundo do operariado pobre das fábricas da CUF no Barreiro, que fizera o curso da Escola Industrial e Comercial Alfredo da Silva, o grande industrial dono das várias fábricas de produtos químicos implantadas no Barreiro sob a permissão superior do salazarismo que selecionava as necessidades industriais do país e escolhia os donos e intérpretes dessa industrialização. O pai era operário na grande fábrica e ele fizera o estágio do curso industrial nessas grandiosas fábricas de produtos químicos locais o que lhe fizera nascer um sonho igualmente grandioso e para si maior que tudo pensável naquela fase da vida.
O sonho de um dia ser quadro técnico na posição de Engenheiro Técnico de Química naquelas enormes e espectaculares fábricas que preenchiam a imaginação de sua adolescência. E para tal tinha de tudo relativizar face ao grande sonho e para começar iria dedicar-se aos estudos para fazer o exame de admissão e poder tirar o curso de Engenheiro Técnico de Química do IIL em Lisboa na Rua Buenos Aires.
Na raiva do chumbo, por causa da geometria, no primeiro exame de admissão ao IIL apesar da média geral de 14, arranjou a força de vontade para repetir no ano seguinte o mesmo exame e disposto a não falhar pois já estava determinado a cumprir o velho sonho. E assim foi.
Começa aqui, propriamente, a história ficcionada de peripécias de aluno, amores mais ou menos infantis ou platónicos e sobretudo a ascenção à Direcção da ADAIIL que o levaram a estar implicado por dentro nas grandes lutas académicas dos anos sessenta do século passado que se deram em todas as Academias do país na luta pela liberdade e independência das Escolas e alunos.
Cumulativamente, quanto mais se entregava ás lutas no interior do IIL e na ligação com os movimentos contestatários das outras escolas contra a manipulação e controlo do Estado Novo salazarista, melhor percebia os meios, formas manhosas e repressivas como atuava o fascismo de modo a dominar não só os estudantes como toda a população do país sem a mínima liberdade de opinião ou expressão.
Em tal posto de observação para analisar os modos de repressão do regime o João vai acrescentando, ao seu conhecimento prático por via da vida diária precária dos pais e familiares assim como entre o operariado fabril no Barreiro, uma maior e mais consistente consciência política que o vai conduzir à aproximação das posições de prática política do Partido Comunista Português até se tornar militante ativo pelas causas estudantis nas grandes lutas pela independência das academias do país naquela época.
A sua vivência de adolescente pelas ruas e conversas dos proletários do Barreiro, sobreviventes do trabalho duro nas fábricas e pagos com salários mínimos para manutenção de suas próprias vidas e famílias, depois amadurecida e esclarecida pela vivência das lutas académicas pelo IIL, além, certamente, de leituras teóricas acerca de política, fizeram de João um jovem empenhado e, sobretudo, de grande amadurecimento e consciência política objectiva.
A tal ponto que, quando já finalista, foi eleita uma nova Direcção da ADAIIL, de cunho mais radicalista, embora apoiada pelo Partido e a seu contragosto e já quando as coisas começavam a correr mal devido ao tal radicalismo retórico João argumentava com o Sena, o presidente da nova Direcção, que, - Nunca tinha havido uma greve a exames no IIL e a proveniência social da maioria dos estudantes, de camadas de médio-baixos recursos, ditava o empenho determinado em fazer o curso, muita gente iria hesitar e recuar na hora crucial -.(pág. 319). Este fora, aliás, sempre o seu pensamento como produto do seu caso pessoal e de seus colegas das Escolas Industriais e Comerciais do país inteiro.
Tal era de uma objectividade flagrante, pois eu mesmo, que fiz o exame de admissão como auto-didata e tirei o curso já depois de voltar da guerra colonial, não tinha outro pensamento na cabeça que não fosse estudar quanto fosse preciso, noite e dia em casa no café ou na casa de banho, para não chumbar; as cadeiras da esplanada do Jardim da Estrela do amigo dos estudantes apelidado de "3 pelos" desfiaram os fundilhos de alguns pares de calças usadas naquele tempo, até porque não haviam muito pares para mudanças.
Por um lado o curso era simultaneamente de Electricidade, Mecânica e Máquinas e Correntes Fracas o que obrigava a horários diários que hoje seriam considerados absurdos, sobretudo, aos Sábados quando os professores, normalmente engenheiros de empresas, tinham o seu tempo livre. Por outro lado alguns professores eram exemplarmente difíceis ou exibicionistas em tornar as matérias ainda mais difíceis do que eram verdadeiramente para valorizar as suas cadeiras e amedrontar os alunos; vide o mariconso Nuno da Fonseca o terror dos alunos e meu com o Cálculo Vectorial e depois com a Geometria Descritiva dada sem Linha de Terra. E outros como o "Volts" o subdirector, o Delta X, o Americano e o Galvão da química que todos os anos contava a mesma história da "Conferência em que participara e só sábios éramos sete". Também havia, contudo, grandes professores como o Chagas Gomes que nos envolvia apaixonadamente nas suas exposições da matéria. Eram de tal modo apelativas as suas aulas que, embora sendo o único professor que nunca fazia " chamadas" de presença, tinha as suas aulas a abarrotar sem lugares disponíveis mesmo quando eram dadas às 08h00 da manhã; um engenheiro professor que devia ser pago milionariamente só para ensinar.
O título "Buenos Aires, Tempos de Paixão" é algo enganador pois insinua paixões amorosas carnais muito próprias daqueles tempos e idades. Contudo a verdadeira paixão do João é, primeiro formar-se como Engenheiro Técnico na Escola do IIL e, segundo é a paixão da política adquirida no decurso do jogo político como dirigente estudantil nos tempos áureos das lutas académicas históricas daquele tempo.
E foi assim, não obstante, desde o início com os exames de admissão ao IIL, ter ao longo do curso tido uma elevada dose de paixonetas; começou com a Antónia e aí vai ele de amores ensolapados com a Telinha, a Linda, a Corinha, viúva com marido, a Tita, as inevitáveis lindas moças Lolita e Gracinha da papelaria, a Micá, a Ana Maria, priminha de cara laroca, a Élis de olhar faiscante, a Bela que provocou um "tremor de terra" fazendo oscilar os alicerces de um edifício sentimental complexo". De facto denota do fácil embeiçar-se por pouco a existência de um edifício sentimental complexo. E continua nas férias em Albufeira na casa da tia; a Tila e a jovem Letíza.
- Até que, na espuma dos dias atarefados entre a Escola, a Associação e a casa-explicações, para além do cansaço, restava uma sensação de falta, numa idade em que o corpo e a alma reclamavam companhia e partilha -.(pág.189). Por fim surgiu o Jardim da Estrela onde procurava um amigo e encontrou umas amigas desse amigo com quem travou conhecimento. Era tempo de - Por aqueles dias sentia-se orfão, por isso lhe agradava tanto a companhia e a conversa loquaz da Isa, embora estivesse intrigado e impressionado com o silêncio e a atenção focada na moça roliça -.(pág. 341). A moça roliça era a Alberta, a redondinha bronzeada nas praias do Sul; a Alby para os amigos.
- João estava num bom momento de afirmação pessoal, a vivência associativa e política dos últimos meses contribuíra para o amadurecimento psicológico e para a melhoria da autoestima. O suficiente para se mostrar mais assertivo no contacto com a jovem graciosa que não desdenhava a companhia -. (pág. 349). Vieram as férias e o João vai à boleia para Quarteira onde tinha «uma moura à espera na costa". A dita moura encantada e encantadora era a Alby, finalmente, a sua paixão para sempre.
Precisamente quando acontecia a derrota da luta dos estudantes do IIL perante o fascismo mitigado marcelista, e ao terminar o curso tão almejado e duro de obter, o João, personagem central da narrativa ficcionada encontra finalmente o seu amor consequente; não fora a derrota estudantil e a continuação da ditadura, que cairia poucos anos depois, e terminava o livro num quase total happy end .
Uma historia verdadeira e um livro bem esgalhado que mostra bom traquejo no tratamento da matéria ficcionada. A não perder, muito especialmente, para os antigos alunos do IIL que viveram aqueles tempos tumultuosos mesmo que lhes tenham passado ao lado, como foi o meu caso, precisamente, por motivos de que os "baixos recursos, ditava o empenho determinado em fazer o curso" em detrimento de tudo o mais.
Obs. Detectei dois erros técnicos no livro:
1) Foi Arquimedes (inventor da alavanca) que postulou que levantaria o mundo se lhe dessem um ponto de apoio e não Galileu.
2) Quando se escreve (pág. 293) ''...acerca daqueles assuntos algo 'isotéricos" certamente se quer referir a assuntos algo "esotéricos".
Etiquetas: as lutas estudantis no IIL no conjunto das lutas académicas dos anos sessenta do século passado.
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