UMA HISTÓRIA GORJONENSE VIII
"Trêz Quadras Dedicadas ao Crime dos Gorjões de Santa Bárbara de Nexe" relatam uma tragédia de amor e ciúmes acontecida por volta do início dos anos trinta do século passado. O Tio Cascalheira e a Sanita do José Reis, padeiro, hoje, ambos com oitenta e oito anos, lembram-se de ouvir falar deste caso tinham cerca de dez anos na altura, confirmam os nomes de família envolvidas e o local do crime, uma casa aqui no Alto, conhecida e ainda existente, em ruinas.
As quadras sugerem uma trilogia de actos trágicos sucessivos, encadeados numa situação de causa efeito, iniciados por um acto de loucura por ciúme incontrolável, depois determinados por justiça divina reclamada pela amiga Augusta, à maneira da tragédia grega como a Oresteia. Os próprios títulos das quadras, dedicados: 1.ª à desventurada, 2.ª à despedida d'uma amiga íntima, 3.ª à morte do assassino, ilustram claramente a ligação dos assuntos tratados em cada canto (cada quadra), em íntima e perfeita unidade com o tema geral: 0 crime dos Gorjões.
Quadra 1.ª: à desventurada.
Canta o carácter malvado que matou a esposa sem ter nenhumas razões e as consequentes imprecações e maldições que a amiga Augusta augura e atira ao assassino, fera desastrada.
José Barriga, vindo da Argentina enamorou-se de uma rapariga orfã de dezassete anos que vivia com uns tios e, foi um encanto de namorado. Também dela ninguém tinha que dizer e ele cumpriu todos os preceitos de pedido da mão da namorada aos tios e ao juiz, indicando ser educado acima do uso local e um homem de boas intenções. Mostrou ser um verdadeiro cavalheiro, dado que a tradição mais funda era o namorado roubar a moça de casa dela, "fugir" com ela, levá-la para casa dos pais, e viver "ajuntados ", isto é, juntos o resto da vida.
E o Barriga levou o seu jovem amor ao casamento. Mas o resto da vida deste casal apaixonado foi curta e trágica. Logo nesse dia lindo de virgindade vestida, depois do altar e da festa, o recém marido bateu-lhe sem ter dó nem arrependimento. De que novidade teve conhecimento o marido para entrar logo a bater na primeira noite? Emprenhou pelo ouvido com um veneno acerca do primo da noiva? Teria comprovado nessa noite, de facto, que era verdade o primo lhe ter roubado a primícia da esposa? O ciúme e a ideia de que os outros o viam com um par de chavelhos na testa era insuportável, enlouqueciam-no. Passados uns tempos dormia ao lado da jovem esposa com uma navalha de barbear debaixo do travesseiro. E um dia, incontroladamente tresloucado não suportando o peso na cabeça, usou a navalha como lanceta na graganta da jovem esposa.
A amiga Augusta, autora das quadras, indignada com tal martírio bárbaro, prega sentidas imprecações ao malvado Barriga e pede a Deus o amaldiçoe com o degredo em África ou na Penitenciária. E, desesperada pela trágica morta, pede vingança por justiça e deseja que tal patife seja queimado no meio de uma praça.
Quadra 2.ª: à despedida d'uma íntima amiga.
Canta os choros e lamentações da amiga íntima Augusta, perante o cadáver da jovem amiga tão estimada e tão bárbara e imerecidamente assassinada.
A Augusta, amiga íntima inconsolável, chora a perda trágica daquela que era para sí uma querida pomba mansa e a explendida flôr entre o coração de espinhos que a ninguém fazia mal. Lamenta não ter podido ajudar a amiga e evitado tal má-sorte, pois jamais pensou que o cão do Barriga fosse capaz de tal traição fatal sobre a sua inocente amiga. Lamenta que a amiga nunca tivesse descoberto à Tiazinha ou a ela própria, as maldades e maus tratos do traidor Barriga que andava com a lança para a degolar.
As lamentações sentidas da Augusta, como se estivera ainda á beira do cadáver que ela encontrara na cosinha e quiz abraçar, reforçam a súplica por justiça na praça pública ou no céu. Há um crime de sangue sobre a sua amiga íntima, feita mártir, que tem de ser expiado pelos homens ou por Deus.
Quadra 3.ª: à morte do assassino.
Canta a intervenção de Deus em socorro das súplicas de vingança e cumprimento das pragas aos milhares pedidas sem medo através de S. Pedro.
Antes que a justiça dos homens se pronunciasse e não fosse suficientemente justa, para o imperdoável crime de sangue, a mão de Deus antecipou-se para justiçar a mártir bondosa e inocente. Depois de quatro dias na prisão a pão e água, o desgraçado Barriga fez uma corda com as bondosas mantinhas da cama de prisão, enforcou-se e foi, com cara de réu, dar contas ao Senhor. Pelas maldades cometidas e consequentes pragas pedidas o Barriga, tirano malvado, expiará no inferno em contraste com a esposa que estará no ceu.
Ainda é revelado neste canto outro antecedente de malvadez praticado pelo Barriga que, certa vez, atirou a esposa para um silvado sem ela a ninguém dizer. É tanbém neste canto que é revelado o enigma que origina o dilema dos ciúmes enlouquecedores do Barriga, quando afirma: matás-te a tua infeliz sem o primo ser culpado.
Comentário
Diz a mitologia grega, que foi fonte das trilogias trágicas ainda hoje motivo de académicas discussões e interpretações de ordem literária e psicanalítica, que as feias e bárbaras Erínias ou Fúrias são primas de Afrodite: aquelas nasceram de salpicos de sangue, esta de salpico seminal, ambos salpicos procedentes de castrações masculinas.
Esta não é uma tragédia contada sob a elevada sabedoria e filosofia dos gregos para ensinar e educar o povo segundo os valores, ordem e justiça dos novos deuses do Olímpo. Ao contrário, esta tragédia dos Gorjões é, desde o título, tratada como um crime perante a justiça dos homens. E é contada de forma popular e por uma escrita e conceitos muito simples retirados da fala do dia a dia dum meio social rural ligado aos trabalhos da terra. Contudo não deixa de ter aspectos comuns: logo no facto de haver uma ligação entre amor-de-perdição e vingança-de-sangue, isto é entre Afrodite e Erínias; depois na justiça feita pelo julgamento do deuses. Na Oresteia de Esquilo, no dirimir entre os deuses é a nova justiça de Zeus imposta por Apolo que vence, Orestes é ilibado, e as Erínias vingadoras terríveis implacáveis, vencidas por argumentação e submetidas às novas leis, tornam-se Euménides, as benevolentes. No crime trágico dos Gorjões, a justiça e leis benevolentes escritas pela racionalidade dos humanos, é inviabilizada pela intervenção da mão de Deus que, solicitado a intervir, aplica com urgência implacável justiça divina.
E, repare-se que, na nossa tragédia dos Gorjões, Deus não intervém solicitado a escutar uma defesa ou acusação por interposta elevada filosofia retórica ou sofística, que o convence. Nada disso, como um Deus tão rural e cruel como o Barriga, ele acode solícito às pragas de vingança pedidas pela amiga Augusta que, subentende-se, falava também em nome do povo local. Neste crime-tragédia dos Gorjões, foi aplicada a justiça dos deuses primitivos proclamada pelo deus da guerra: Ares é imparcial, mata aqueles que mataram.
As quadras sugerem uma trilogia de actos trágicos sucessivos, encadeados numa situação de causa efeito, iniciados por um acto de loucura por ciúme incontrolável, depois determinados por justiça divina reclamada pela amiga Augusta, à maneira da tragédia grega como a Oresteia. Os próprios títulos das quadras, dedicados: 1.ª à desventurada, 2.ª à despedida d'uma amiga íntima, 3.ª à morte do assassino, ilustram claramente a ligação dos assuntos tratados em cada canto (cada quadra), em íntima e perfeita unidade com o tema geral: 0 crime dos Gorjões.
Quadra 1.ª: à desventurada.
Canta o carácter malvado que matou a esposa sem ter nenhumas razões e as consequentes imprecações e maldições que a amiga Augusta augura e atira ao assassino, fera desastrada.
José Barriga, vindo da Argentina enamorou-se de uma rapariga orfã de dezassete anos que vivia com uns tios e, foi um encanto de namorado. Também dela ninguém tinha que dizer e ele cumpriu todos os preceitos de pedido da mão da namorada aos tios e ao juiz, indicando ser educado acima do uso local e um homem de boas intenções. Mostrou ser um verdadeiro cavalheiro, dado que a tradição mais funda era o namorado roubar a moça de casa dela, "fugir" com ela, levá-la para casa dos pais, e viver "ajuntados ", isto é, juntos o resto da vida.
E o Barriga levou o seu jovem amor ao casamento. Mas o resto da vida deste casal apaixonado foi curta e trágica. Logo nesse dia lindo de virgindade vestida, depois do altar e da festa, o recém marido bateu-lhe sem ter dó nem arrependimento. De que novidade teve conhecimento o marido para entrar logo a bater na primeira noite? Emprenhou pelo ouvido com um veneno acerca do primo da noiva? Teria comprovado nessa noite, de facto, que era verdade o primo lhe ter roubado a primícia da esposa? O ciúme e a ideia de que os outros o viam com um par de chavelhos na testa era insuportável, enlouqueciam-no. Passados uns tempos dormia ao lado da jovem esposa com uma navalha de barbear debaixo do travesseiro. E um dia, incontroladamente tresloucado não suportando o peso na cabeça, usou a navalha como lanceta na graganta da jovem esposa.
A amiga Augusta, autora das quadras, indignada com tal martírio bárbaro, prega sentidas imprecações ao malvado Barriga e pede a Deus o amaldiçoe com o degredo em África ou na Penitenciária. E, desesperada pela trágica morta, pede vingança por justiça e deseja que tal patife seja queimado no meio de uma praça.
Quadra 2.ª: à despedida d'uma íntima amiga.
Canta os choros e lamentações da amiga íntima Augusta, perante o cadáver da jovem amiga tão estimada e tão bárbara e imerecidamente assassinada.
A Augusta, amiga íntima inconsolável, chora a perda trágica daquela que era para sí uma querida pomba mansa e a explendida flôr entre o coração de espinhos que a ninguém fazia mal. Lamenta não ter podido ajudar a amiga e evitado tal má-sorte, pois jamais pensou que o cão do Barriga fosse capaz de tal traição fatal sobre a sua inocente amiga. Lamenta que a amiga nunca tivesse descoberto à Tiazinha ou a ela própria, as maldades e maus tratos do traidor Barriga que andava com a lança para a degolar.
As lamentações sentidas da Augusta, como se estivera ainda á beira do cadáver que ela encontrara na cosinha e quiz abraçar, reforçam a súplica por justiça na praça pública ou no céu. Há um crime de sangue sobre a sua amiga íntima, feita mártir, que tem de ser expiado pelos homens ou por Deus.
Quadra 3.ª: à morte do assassino.
Canta a intervenção de Deus em socorro das súplicas de vingança e cumprimento das pragas aos milhares pedidas sem medo através de S. Pedro.
Antes que a justiça dos homens se pronunciasse e não fosse suficientemente justa, para o imperdoável crime de sangue, a mão de Deus antecipou-se para justiçar a mártir bondosa e inocente. Depois de quatro dias na prisão a pão e água, o desgraçado Barriga fez uma corda com as bondosas mantinhas da cama de prisão, enforcou-se e foi, com cara de réu, dar contas ao Senhor. Pelas maldades cometidas e consequentes pragas pedidas o Barriga, tirano malvado, expiará no inferno em contraste com a esposa que estará no ceu.
Ainda é revelado neste canto outro antecedente de malvadez praticado pelo Barriga que, certa vez, atirou a esposa para um silvado sem ela a ninguém dizer. É tanbém neste canto que é revelado o enigma que origina o dilema dos ciúmes enlouquecedores do Barriga, quando afirma: matás-te a tua infeliz sem o primo ser culpado.
Comentário
Diz a mitologia grega, que foi fonte das trilogias trágicas ainda hoje motivo de académicas discussões e interpretações de ordem literária e psicanalítica, que as feias e bárbaras Erínias ou Fúrias são primas de Afrodite: aquelas nasceram de salpicos de sangue, esta de salpico seminal, ambos salpicos procedentes de castrações masculinas.
Esta não é uma tragédia contada sob a elevada sabedoria e filosofia dos gregos para ensinar e educar o povo segundo os valores, ordem e justiça dos novos deuses do Olímpo. Ao contrário, esta tragédia dos Gorjões é, desde o título, tratada como um crime perante a justiça dos homens. E é contada de forma popular e por uma escrita e conceitos muito simples retirados da fala do dia a dia dum meio social rural ligado aos trabalhos da terra. Contudo não deixa de ter aspectos comuns: logo no facto de haver uma ligação entre amor-de-perdição e vingança-de-sangue, isto é entre Afrodite e Erínias; depois na justiça feita pelo julgamento do deuses. Na Oresteia de Esquilo, no dirimir entre os deuses é a nova justiça de Zeus imposta por Apolo que vence, Orestes é ilibado, e as Erínias vingadoras terríveis implacáveis, vencidas por argumentação e submetidas às novas leis, tornam-se Euménides, as benevolentes. No crime trágico dos Gorjões, a justiça e leis benevolentes escritas pela racionalidade dos humanos, é inviabilizada pela intervenção da mão de Deus que, solicitado a intervir, aplica com urgência implacável justiça divina.
E, repare-se que, na nossa tragédia dos Gorjões, Deus não intervém solicitado a escutar uma defesa ou acusação por interposta elevada filosofia retórica ou sofística, que o convence. Nada disso, como um Deus tão rural e cruel como o Barriga, ele acode solícito às pragas de vingança pedidas pela amiga Augusta que, subentende-se, falava também em nome do povo local. Neste crime-tragédia dos Gorjões, foi aplicada a justiça dos deuses primitivos proclamada pelo deus da guerra: Ares é imparcial, mata aqueles que mataram.
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