domingo, setembro 13, 2009

UMA HISTÓRIA GORJONENSE VII

FACETA DE POETA
O Adelino Bexiga, tal como o seu irmão, inspirado poeta popular de quadras impressas em folhetos de feira, também transportava em sí uma visão poética de ser e estar muito própria, que lhe marcou vincadamente o rumo e modo de vida.

Era eu garoto, trabalhava ele na oficina de sapateiro de Mestre José Condinho, aqui no Alto. Tinha, desde pequeno, andado a aprender o ofício com o Mestre Zé Sapateiro, da Charneca, contudo nunca aprendera bem a arte de bem bater a sola, enfiar a sevela, enformar um sapato domingueiro: quando muito era capaz de meter umas "tombas" numas botas grossas. E por isso nunca passou de uma "sapateira", como lhe chamava o povo referindo-se à pouca qualidade do produto saído de suas mãos. Também diziam dele que era um "bate sola", exactamente por não fazer trabalho fino mas, tão somente, fazer os trabalhos que não implicavam mão de artista: a arte do acabamento, do toque artístico final, era para Mestre. A sua inquieração mental pendia mais para ser como o irmão mais velho: trabalhar o mínimo para poetar o máximo. À sua maneira.

Ser sapateiro era o pretexto para vagabundear a sua imaginação por outras bandas, outras necessidades, outras ousadias mais astutas, outro modo de vida paralelo, clandestino e tão íntimo como o poema antes do papel. Meteu-se a fazer a sua própria casa, tirada do sonho e desenhada de sua pura imaginação e feita, única e exclusivamente, pela vontade e força dos seus braços. Sapateirava na oficina do Mestre mas, a maior parte do tempo vivia erigindo o sonho feito de pedras não trabalhadas e mal sobrepostas, quase atiradas umas para cima das outras, como se estivera a fazer cavernas com "maroiços", mantidas de pé por um caldo ralo de argamassa de cal e areia.

A figura pequena e franzina do Adelino ia desfazendo-se, menos pela leveza de sapateirar e mais com tanto carregar pedras para alevantar os maroiços que formavam as três divisões do seu palácio. Ele fazia de carregador de pedras, servente e pedreiro, além de ser o arquitecto e engenheiro e tudo o mais que fosse necessário para ver crescer o seu palácio de grossos valados. Contudo o seu entusiasmo e vontade imparável começou a ser insuficiente para prosseguir o sonho ao ritmo desejado. Apesar de tudo ser fruto do seu esforço, a miséria da jorna de sapateiro, não lhe consentia acabar a sua obra de arte em pedra à balda. Fôra preciso gastar poupanças na cal e areia e agora era preciso dinheiro para as portas, ladrilhos de barro e sobretudo ferro e cimento para a placa de cobertura. Deu largas à imaginação, sob a forte pressão da necessidade, para que esta lhe arranjasse uma solução que o ajudasse vir a ser dono da sua própria casa-abrigo.

Num analfabeto, nem mesmo uma imaginação poética, sob a pata da ordem e poder indiscutíveis, organizados com base na imposição de vidas miseráveis como era a sua, seria capaz de fugir à conclusão da impossíbilidade de, por via normal da venda de sua força de trabalho, poder ver o seu sonho concretizar-se. Ou emigrava, como a maior parte do povo estava fazendo, ou jogava mão de formas de poética subversiva da ordem estabelecida. Não tinha familiares lá fora, para emigrar tinha de ser a salto, por um lado, por outro a sua figura pequena e franzina não lhe ajudaria a arranjar trabalho de emigrante clandestino: duro, sujo, de criado às ordens e mal pago. Nem podia imaginar quando poderia retomar a construção do seu palácio tão desejado e deixado ao abandono. Naquele pedaço de terra, adquirido à custa de miséria e força de sonho, onde já plantara árvores que ele regava as raizes e cresciam viçosas, não podia deixar secar a mais querida planta entre todas.

E assim foi, e se ficava era para continuar a construção e acabar a obra-prima arquitectada de sua imaginação. Não tinha meios nem pé-de-meia para continuar mas, pelos caminhos e veredas que pisava até à oficina do Mestre Condinho no Alto, ele bem via as imponentes alfarrobeiras de abas até ao chão carregadas de fruto valioso. E via ainda de olhos mais acesos, as airosas e doces amendoeiras de ramos pendentes ao peso de cachos de amêndoas ainda mais valiosas. E ainda via também as redondas e ramudas figueiras tocando o chão, ao nascer do sol, iluminando nos gomos, abundantes e brilhantes figos maduros "arreguados" pela brandura da noite.

Para poupar já deixara de comprar comida além do pão: durante o dia comia figos e outros frutos que apanhava nas terras e nos quintais, muitas vezes também alfarrobas secas, à noite comia os mesmos frutos, que levava para casa, e eram o conduto do pão. Não comprava roupa nova nem sabão, não se lavava e andrajou-se, contudo o sonho de sua vida começava a cumprir-se. Arrancou a pedra, britou a pedra, comprou o ferro e cimento, armou a cofragem com troncos e tábuas de caixotes, fez a massa, fez a escada de paus, acarretou a massa a baldes e uma placa grossa às ondas alterosas fez-se cobertura de palácio de pedra amaroiçado. Jamais alguma casa vista até então fôra integrada tão completamente na Natureza. E tornou-se paisagem virgem, quando passados anos, a terra acumulada sobre a placa, foi fecundada por sementes de ervas altas e arbustos rasteiros, deixando perceber como única existência ali, de valados e plantas como em qualquer terra do barrocal: a casa perfeita para amante ecológico e defensor do ambiente.

O Adelino, agora no seu exíguo palácio de pedra cavernoso, continuou a desleixar-se mantendo o seu aspecto de poético andarilho sujo e trapilha. Deixou a oficina de sapateiro, não trabalhava, alimentava-se dos mesmos frutos apanhados aqui e além, mas nem por isso deixava de dar sinais de algum desafogo quando era desafiado sobre a miséria do seu modo de vida. A sua forretice era extrema e inimaginável, contudo, não trabalhando, nunca daria mais que para um pé-de-meia escondido no maroiçal palácio e nunca para pôr no banco como começava a ouvir-se dizer.

Entretando, com o diz diz sobre poupanças do Adelino, também soavam todos os anos, pela altura da apanha dos frutos secos, as queixas dos donos das terras próximas e afastadas de sua nova morada. Em ano de fartura de frutos secos, as alfarrobeiras e amendoeiras inicialmente carregadas verdes, na altura do fruto seco, de repente surgiam descarregadas da sua carga inicial como se foram fortemente abanadas nos ramos mais baixos e apanhados os frutos caídos. O falatório do lugar, para classificar uma atitude revestida de alguma astúcia poética desde o "Hino a Hermeias" atribuido a Homero, usava uma alegoria também poética e que ouvi ao Leonardo dizer várias vezes, e que era: - para alguns o Sol nasce à meia noite -. Referia-se o povo àqueles que pela calada da noite e ao luar da madrugada iam roubar frutos secos às árvores espalhadas e escondidas pelos barrancos.

Face às queixas dos donos das terras, os "guardadores de terras" Raposeiras e Modesto, contratados nesse ano para manterem inviolável a propriedade alheia, uma noite montaram uma "espreita" ao Adelino e apanharam-no com a mão na saca. Ou melhor, nas sacas visto que levava consigo algumas, enchi-as e ia escondê-las nas moitas do mato para noutro dia, com calma e à melhor hora, descontraidamente, ir recolhê-las. Estes guardadores sazonais usavam um alto, flexível e nodoso varapau de marmeleiro, uma espécie de símbolo de poder e de respeito de que eram investidos pelos proprietários locais. Com esses varapaus, malharam o corpo do pobre do Adelino de nódoas roxas que o deixaram inválido para mais noitadas ao luar nesse ano.

Passou a ter mais cuidado o Adelino, contudo não deixou a sua arte poética, executada ao Sol da meia noite, nem tampouco a inspiração lhe faltou. Foi obrigado a percorrer caminhos mais longos e lugares mais afastados onde não havia guardadores ou não era conhecido nem suspeito: passou a ser mais custoso poetar à sua maneira. Passados anos, mais velho e cansado, já lhe custava ir poetar para muito longe e carregar com os pesados poemas até casa. A um poeta de raiz a imaginação fervilha de invencionismo e até uma imprevista cagadela de pássaro, pode ser motivo de uma invenção maior que o roubo das vacas do deus Hermeias ao deus Apolo. Um dia quando ia com a cantara de água ao poço, afastado de seu palácio paisajístico cerca de mil metros, um pardal cagou de cima de uma amendoeira carregada de fruto e enfiou a cagadela pelos buracos do velhinho e roto chapeu às três pancadas, desfazendo-se na cabeça. Irritado pelo abuso, num golpe rápido, pôs a cantara no chão e atirou uma pedrada ao pardal. Resultado: cairam várias amêndoas e uma delas, enfiou pela boca da cantara de água. Aí, o Adelino olhou, olhou, e... pensou: eureka.

Desde então, o povo começou a ver o Adelino num vai e vem no caminho do poço carregando a sua cantara de água. Tanto que desconfiou da azáfama, e tanto mais que o Adelino continuava a andar sujo, nem ele se lavava nem a roupa andava limpa. Então para que acarretava tanta água pensava o povo, torcendo o nariz. Num ano bom de frutos secos, os guardadores contratados, o Modesto e João Coxo, avisados da desconfiança do povo e provas de rastos e restos no caminho do poço e imediações, montaram uma nova "espreita" e descobriram o truque de astúcia usado. No outro dia vinha o Adelino do poço, saltaram-lhe ao caminho e pediram-lhe uma sede de água. Esquivou-se, disse que fossem a casa dele que tinha lá água, um púcaro e um coxarro para beberem à vontade. - Não, disseram os guardadores, temos sede e podemos beber pela cantara levando-a ao alto e deixando cair a água pela goela abaixo sem tocar a boca da cantara, vamos a isso -. Face à recusa insistente do Adelino, os guardadores trocaram um olhar de acordo e zás: levantaram os bordões de marmeleiro e rebentaram em cacos a cantara de água. E qual milagre das rosas, ali houve milagre de água feita amêndoas. Outra vez o pobre desgraçado ficou pintado de nódoas roxas e negras.

O irmão poeta continuava a fazer poesia popular com êxito, sob a forma de "quadrismos" como lhes chamava, e o Adelino continuou igualmente com a sua veia poética virada para imaginativas maneiras de ganhar o pão por via de astuciosos artifícios e representações. E também com êxito e proveito, pois agora, muitas vezes fazia de banqueiro ao irmão poeta sem cheta. O poeta poeta gastava tudo na bebida como estímulo à inspiração, o faceta de poeta não bebia, não comia, não se lavava nem se vestia a não ser de trapos. Explorando o seu estatuto de magricela roto e sujo, resolveu meter-se a andarilho andrajoso a pedir esmola de porta em porta e ruas de Olhão. Comprou um "ferrolho" de bicicleta para ir à sua nova vida de "ganha pão". Dizem que, paralelamente, à sua actividade de mendigo profissional, nunca deixou de acumular com regulares saltadas nocturnas ao fruto seco na terra alheia.

Era miserável mas assumida a sua vida, gostava de viver à base de fazer de parvo para enganar os espertos, de fazer de pedinte e ter mais que quem lhe dava esmola, de protagonizar o papel de zé-ninguém quando se sentia mais gente que muitos. A sua realidade estava em uníssono com a sua humanidade: fôra sempre ele próprio e o que desejou ser em cada momento sempre, intimamente feliz num ambiente de natureza e liberdade.

Um dia, numa rua de Olhão, um camião que fazia marcha atrás estava ameaçando o seu "ferrolho" que deixara ali estacionado. Aflito, correu para salvar a esquálida bicicleta e foi ele que ficou sob o rodado do pesado monstro. No palco da comédia da sua vida real, o seu papel de representar sempre escondido atrás de máscaras diversas, merecia um final trágico e conseguiu-o. O irmão, poeta quadrista, também já fôra atropelado e esvaíra-se em sangue na valeta. O humano é feito de carne e alma, e estes são os autores e os actores intérpetres da comédia e tragédia da vida corrente. Na vida destinada aos poetas, a tragédia é privilegiada.
Deixou no banco mais de vinte mil contos. Transpôs a morte, dando continuidade à comédia da sua vida real, transladando as suas máscaras para os familiares na disputa pela partilha desta herança. O Adelino viveu uma comédia feliz e na hora da morte ainda contribuiu com uma ajuda para a comédia da vida real dos vivos.


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