UMA HISTÓRIA GORJONENSE IX
O SACO COFRE
Custódio Correia o " Chave de jogo ou Chavinha", filho de Maria Filipa "Ti'Bate Estradas", toda a vida pouco companheiro do trabalho em favor de muita devoção e dedicação às modalidades patrocinadas por Diana e Baco, na sua velhice conseguiu arranjar poupanças que guardava em casa.
Em jovem fora um promissor ciclista que, treinado e guiado pelo Mestre Félinhos, ganhara imensas corridas na pista de Loulé. Grande sprinter e manhoso como Ulisses, fingia avarias para andar atrás do pelotão donde arrancava em força e velocidade para cortar a meta em primeiro. Contudo o seu gosto por Baco e pelas bacantes de Olhão deitaram a perder a sua promissora carreira de ciclista famoso.
O sinal do seu modo de ser para a vida estava dado. Nunca seria um homem fora do seu mundo rural ligado à terra por raizes vindas desde os tempos primitivos.
Exímio caçador de cão e furão foi, igualmente, mestre na arte de ensinar cães a caçar, como o seu célebre "carocho" preto que apanhava lebres na carreira. Ele próprio parecia que farejava os coelhos, olhava para os buracos dos valados e moiroços e descobria logo se havia bicho dentro pelas pegadas e pêlos recentes nas pedras da estreita abertura. Era um "cão" algo maldoso com os copos mas, sobretudo, como caçador, tinha a experiência de muitos cães cacenhos e, sem faro como eles, indicava-lhes onde estavam os coelhos: era mais caçador que um cão de caça. Por isso, a maior parte das vezes dispensava o cão, levava consigo apenas o furão escondido e quando voltava trazia consigo o furão e mais dois ou três coelhos.
Quase toda a vida alimentou-se da caça e para os trapos e copos fazia a campanha do varejo dos frutos secos e trabalhava de caiador no lugar. Também tinha alguma receita de colheita de amêndoa e alfarroba própria e outra imprópria. Nos anos sessenta, quando toda a gente deu em emigrar a salto para a França, o Custódio também quiz experimentar, e lá foi, tão simples analfabeto como os outros mas mais ingénuo. Via os amigos de infância, passados uns anos, em "vacanças" com bons blusões de cabedal, reluzentes "espadas" e maços de notas soltas nas algibeiras, e não resistiu. Porventura imaginou que em França era como no varejo da amêndoa e alfarroba: era só chegar, varejar, apanhar, vender e arrecadar os francos.
A realidade foi mais dura do que pensara e entrevira através das impressões exibídas pelos seus amigos emigrantes quando vinham à terra. Ainda se aguentou cerca de dois anos em França com a pá e picareto na mão cheia de novos calos grossos. Desiludido, regressou à sua tradicional vida amassada de cal, caça, copos e frutos secos. Perdera qualquer ambição de enriquecer ou sequer de amealhar um dinheirinho para as aflições. Custava muito e ele não tinha precisão disso para nada, tinha a sua casa dos pais, comia do melhor e trabalhava, descansava e bebia quando lhe apetecia. Ele próprio era um cozinheiro gabado e muito requisitado para os petiscos de caça e passarinhos na caçarola. Nunca mais se meteu à aventura para além de enfrentar muitas vezes os guardas da caça de quem tinha de fugir frequentemente pelos matos e esconder-se nas moitas.
Tendo chegado à idade de reforma, disseram-lhe que podia obter a "retrait" francesa pelo tempo que lá trabalhara. E assim o fez e em boa hora: apanhou uma lei francesa mãos largas para reformados e passado um tempo começou a receber trimestralmente cerca de quatrocentos francos, aproximadamente cento e vinte contos. Como sempre soubera viver sem tal remessa, além de poder fazer ums arranjitos na casa e passar a andar melhor apresentado, começou a poder ter pé-de-meia. Sentiu-se pessoa responsável e como tal tinha de pensar no futuro.
Quando chegou à poupança de duzentos contos em notas de mil, fez um rolo das notas e meteu-as dentro dum saco de alfarrobas, bem escondidas para efeitos de segurança contra roubo. No ano seguinte houve boa safra de frutos secos e o Chavinha juntou ao saco-cofre mais uns quantos sacos de alfarroba. O valor arroba de alfarroba estava em alta e o nosso homem começou a negociar a venda das sacas de fruto seco que tinha em casa. Um dia vendeu e o comprador foi com uma carrinha caixa aberta carregar e lá foram para a fábrida de moagem as sacas todas do Custóidinho Chavinha.
Quando o operador do triturador da fábrica de moagem deu por andarem pedaços de papel no ar e descobria que eram pedaços de notas de mil escudos, chegou o Chavinha esbaforido a gritar pelas suas sacas e que não as despejassem no monte para trituração. Tarde de mais, já só havia ripas de notas impossíveis de voltar a ser notas inteiras. As notas reluzentes que tanto custara guadar em sacrfício de belos dias de copos e Olhão, alí estavam feitas migalhas de papel que nem valiam como alfarroba com quem se confundiram.
O Chavinha chorou, coisa rara e nunca vista. Amargurado matutou fundo no caso e perguntava-se indignado porque razão quando pensou em ser uma pessoa normal como as outras, portar-se igual a toda a gente e ter um pé-de-meia para o futuro, é que lhe acontecia tal azar.
Logo esteve inclinado para um castigo do céu pelo longo desprezo ao trabalho e maldades antigas. A infelicidade pela perda da fortuna deixou-o de novo em baixo e para afogar as mágoas voltou à vida antiga de total desprendimento com poupanças. Voltou à sua felicidade de sempre de viver o dia a dia sem preocupações de futuro, de beber e comer, de saúde, de higiéne, de "forrar" dinheiro, de parecer igual aos demais. E com tal estado de espírito, aos poucos, não só voltou a ganhar a alegria perdida como começou a apreciar e gostar ainda mais que antes, do lado humano primitivo e simples como levava a vida. Sentia-se outra vez ele próprio, sem imitar ninguém, comendo e vivendo dos bens selvagens e livres da terra, e era tão livre como os coelhos ou passarinhos que apanhava para seu sustento.
Então, fazendo uma retrospectiva do que lhe havia acontecido sob a perspectiva nova do que lhe estava a acontecer, agora já não tinha dúvidas. A perda da fortuna pela trituração das notas fora simbólica: afinal fôra um aviso do céu e não um castigo. Um aviso sob a forma de parábola, como é tradicional do céu, que indicava que ele andava triturando a sua bela vida em liberdade em prol da ambição e futuro incertos. Agora percebia a subtileza e o alcance do céu ao fazer-lhe um mal imediato para que pudesse reconhecer o bem depois, para sempre.
O Chavinha ainda viveu muitos anos dentro da sua pele própria de caçador, de comungador no altar de Baco, de caiador, de inigualável ensaiador de cães, de figura única. Nunca, nem jamais lhe passaria pela cabeça, ensinar um cão a velar um morto. Contudo o seu cão, quando uma noite caiu da cadeira morto devido a um avc fulminante, deitou-se encostado a seu lado e ali ficou quase dois dias. Dando conta que o dono não acordava nem se mexia e estava frio avisou a vizinhança toda com choros de ganidos desesperados. Outra lição do céu através de nova parábola: o céu, que desde as origens dera aos cães o don do faro para detectar, conhecer e gostar do dono, dera também ao Chavinha o don de ensinar o faro dos cães para caçar, tornando viável o seu modo de vida simplles, junto da natureza sem ambições mundanas.
Moral da história: o Chavinha sempre viveu sob o desígnio e benção do Céu, logo deve estar em boa companhia.
Em jovem fora um promissor ciclista que, treinado e guiado pelo Mestre Félinhos, ganhara imensas corridas na pista de Loulé. Grande sprinter e manhoso como Ulisses, fingia avarias para andar atrás do pelotão donde arrancava em força e velocidade para cortar a meta em primeiro. Contudo o seu gosto por Baco e pelas bacantes de Olhão deitaram a perder a sua promissora carreira de ciclista famoso.
O sinal do seu modo de ser para a vida estava dado. Nunca seria um homem fora do seu mundo rural ligado à terra por raizes vindas desde os tempos primitivos.
Exímio caçador de cão e furão foi, igualmente, mestre na arte de ensinar cães a caçar, como o seu célebre "carocho" preto que apanhava lebres na carreira. Ele próprio parecia que farejava os coelhos, olhava para os buracos dos valados e moiroços e descobria logo se havia bicho dentro pelas pegadas e pêlos recentes nas pedras da estreita abertura. Era um "cão" algo maldoso com os copos mas, sobretudo, como caçador, tinha a experiência de muitos cães cacenhos e, sem faro como eles, indicava-lhes onde estavam os coelhos: era mais caçador que um cão de caça. Por isso, a maior parte das vezes dispensava o cão, levava consigo apenas o furão escondido e quando voltava trazia consigo o furão e mais dois ou três coelhos.
Quase toda a vida alimentou-se da caça e para os trapos e copos fazia a campanha do varejo dos frutos secos e trabalhava de caiador no lugar. Também tinha alguma receita de colheita de amêndoa e alfarroba própria e outra imprópria. Nos anos sessenta, quando toda a gente deu em emigrar a salto para a França, o Custódio também quiz experimentar, e lá foi, tão simples analfabeto como os outros mas mais ingénuo. Via os amigos de infância, passados uns anos, em "vacanças" com bons blusões de cabedal, reluzentes "espadas" e maços de notas soltas nas algibeiras, e não resistiu. Porventura imaginou que em França era como no varejo da amêndoa e alfarroba: era só chegar, varejar, apanhar, vender e arrecadar os francos.
A realidade foi mais dura do que pensara e entrevira através das impressões exibídas pelos seus amigos emigrantes quando vinham à terra. Ainda se aguentou cerca de dois anos em França com a pá e picareto na mão cheia de novos calos grossos. Desiludido, regressou à sua tradicional vida amassada de cal, caça, copos e frutos secos. Perdera qualquer ambição de enriquecer ou sequer de amealhar um dinheirinho para as aflições. Custava muito e ele não tinha precisão disso para nada, tinha a sua casa dos pais, comia do melhor e trabalhava, descansava e bebia quando lhe apetecia. Ele próprio era um cozinheiro gabado e muito requisitado para os petiscos de caça e passarinhos na caçarola. Nunca mais se meteu à aventura para além de enfrentar muitas vezes os guardas da caça de quem tinha de fugir frequentemente pelos matos e esconder-se nas moitas.
Tendo chegado à idade de reforma, disseram-lhe que podia obter a "retrait" francesa pelo tempo que lá trabalhara. E assim o fez e em boa hora: apanhou uma lei francesa mãos largas para reformados e passado um tempo começou a receber trimestralmente cerca de quatrocentos francos, aproximadamente cento e vinte contos. Como sempre soubera viver sem tal remessa, além de poder fazer ums arranjitos na casa e passar a andar melhor apresentado, começou a poder ter pé-de-meia. Sentiu-se pessoa responsável e como tal tinha de pensar no futuro.
Quando chegou à poupança de duzentos contos em notas de mil, fez um rolo das notas e meteu-as dentro dum saco de alfarrobas, bem escondidas para efeitos de segurança contra roubo. No ano seguinte houve boa safra de frutos secos e o Chavinha juntou ao saco-cofre mais uns quantos sacos de alfarroba. O valor arroba de alfarroba estava em alta e o nosso homem começou a negociar a venda das sacas de fruto seco que tinha em casa. Um dia vendeu e o comprador foi com uma carrinha caixa aberta carregar e lá foram para a fábrida de moagem as sacas todas do Custóidinho Chavinha.
Quando o operador do triturador da fábrica de moagem deu por andarem pedaços de papel no ar e descobria que eram pedaços de notas de mil escudos, chegou o Chavinha esbaforido a gritar pelas suas sacas e que não as despejassem no monte para trituração. Tarde de mais, já só havia ripas de notas impossíveis de voltar a ser notas inteiras. As notas reluzentes que tanto custara guadar em sacrfício de belos dias de copos e Olhão, alí estavam feitas migalhas de papel que nem valiam como alfarroba com quem se confundiram.
O Chavinha chorou, coisa rara e nunca vista. Amargurado matutou fundo no caso e perguntava-se indignado porque razão quando pensou em ser uma pessoa normal como as outras, portar-se igual a toda a gente e ter um pé-de-meia para o futuro, é que lhe acontecia tal azar.
Logo esteve inclinado para um castigo do céu pelo longo desprezo ao trabalho e maldades antigas. A infelicidade pela perda da fortuna deixou-o de novo em baixo e para afogar as mágoas voltou à vida antiga de total desprendimento com poupanças. Voltou à sua felicidade de sempre de viver o dia a dia sem preocupações de futuro, de beber e comer, de saúde, de higiéne, de "forrar" dinheiro, de parecer igual aos demais. E com tal estado de espírito, aos poucos, não só voltou a ganhar a alegria perdida como começou a apreciar e gostar ainda mais que antes, do lado humano primitivo e simples como levava a vida. Sentia-se outra vez ele próprio, sem imitar ninguém, comendo e vivendo dos bens selvagens e livres da terra, e era tão livre como os coelhos ou passarinhos que apanhava para seu sustento.
Então, fazendo uma retrospectiva do que lhe havia acontecido sob a perspectiva nova do que lhe estava a acontecer, agora já não tinha dúvidas. A perda da fortuna pela trituração das notas fora simbólica: afinal fôra um aviso do céu e não um castigo. Um aviso sob a forma de parábola, como é tradicional do céu, que indicava que ele andava triturando a sua bela vida em liberdade em prol da ambição e futuro incertos. Agora percebia a subtileza e o alcance do céu ao fazer-lhe um mal imediato para que pudesse reconhecer o bem depois, para sempre.
O Chavinha ainda viveu muitos anos dentro da sua pele própria de caçador, de comungador no altar de Baco, de caiador, de inigualável ensaiador de cães, de figura única. Nunca, nem jamais lhe passaria pela cabeça, ensinar um cão a velar um morto. Contudo o seu cão, quando uma noite caiu da cadeira morto devido a um avc fulminante, deitou-se encostado a seu lado e ali ficou quase dois dias. Dando conta que o dono não acordava nem se mexia e estava frio avisou a vizinhança toda com choros de ganidos desesperados. Outra lição do céu através de nova parábola: o céu, que desde as origens dera aos cães o don do faro para detectar, conhecer e gostar do dono, dera também ao Chavinha o don de ensinar o faro dos cães para caçar, tornando viável o seu modo de vida simplles, junto da natureza sem ambições mundanas.
Moral da história: o Chavinha sempre viveu sob o desígnio e benção do Céu, logo deve estar em boa companhia.
Etiquetas: histórias gorjonenses
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