segunda-feira, janeiro 18, 2010

UMA HISTÓRIA GORJONENSE X


1. A ESCOLA DO VIRGÍLIO
Tinha a mãe posto o Virgílio na Escola Oficial e o moço tinha custosa e atrapalhadamente passado para a 3ª classe aos nove anos, naquele tempo de princípios dos anos quarenta. Os tempos estavam difíceis e muito duros para as famílias pobres de pouca terra, lavoura e frutos secos, para mais em ano mau de colheita que povocava escassez de dias de trabalho por conta. Pior ainda numa família onde o pai abalara para França, trazia a mãe o moço na barriga, e por lá andava sem dar sinal de vida o que dificultava ainda mais a situação em casa da Ti'Furgena com três moças e um moço para criar.

Tinha de fazer-se o milagre diário do pão e conduto mínimo sobre a mesa e saber repartir a miserável fartura a bem pelos filhos que à mãe bastava-lhe azeitonas e figos torrados. As moças, ainda meninas e mulherzinhas, já ajudavam na lida da casa e trabalhavam nas casas de lavradores, eram já contribuintes para o milagre de cada dia feito à mesa com toalha de oleado sem pratos postos. Porque eram mais velhas e eram moças, a estas nem sequer lhes tinha sido dado hipótese de frequentar a escola.

Nesta magra e frágil situação de recursos familiares com tendência a piorar devido à guerra mundial que deflagrara, o Virgílio era obrigado a ajudar em casa nos trabalhos de ida às compras, de tratar dos "bichos" e nos trabalhos de varejo e apanha nos pequenos pedaços de terra própria. Via-se obrigado a faltar frequentemente à escola, além de que, criado entre uma famíla rural de analfabetos, o seu gosto era tudo menos virado para livros, contas e estudos. E também nada ajudava a gostar da escola as frequentes meia dúzia de "reguadas" em cada mão que a profesora lhe aplicava sem ele perceber porquê. Pensava para sí próprio: - já sou obrigado a estar preso na escola e ainda por cima batem-me sem eu fazer mal a ninguém-. Custava-lhe suportar ser mal tratado sem ter feito mal algum, segundo a sua educação em liberdade na escola da natureza onde nem os valados mais altos nem o mato mais denso o aprisionavam.

Naquele tempo vivia-se, salvo alguns ofícios tradicionais do mundo rural, quase integralmente dependente da produção da terra. A escola e o saber ler e escrever bem era uma desprezível ocupação face à aprendizagem dos duros serviços do campo, onde se começava a ganhar cedo para ajudar ao milagre diário do pão sobre a mesa. Tanto que, anos mais tarde ainda, avós de garotos que andavam na escola até à 4ª classe e iam estudar, diziam aos netos que andavam a desperdiçar o tempo, que as letras não davam de comer a ninguém, que jamais ganhariam para sustentar uma casa, que nunca haviam de ser alguém sem aprender um ofício e era certo que iam passar uma vida de miséria e fome porque ninguém lhes daria trabalho por saber ler mas não saber cuidar da terra ou ter ofício e ser mestre.
Era com tal dureza de previsões carregadas de desgraças negras que os mais velhos admoestavam os jovens familiares descendentes, na boa-fé de lhes incutir a severa educação rural e prosseguir a tradição ancestral, transmitida de pais a filhos. Não por lhes querer mal, pelo contrário, este era o modo de lhes expressar o melhor bem que lhes desejavam para o futuro: porque assim tinham educado os filhos e assim tinham ouvido dizer que fôra com os avós deles e que portanto sempre assim fôra e seria.
Grande força tem esta tradição inapagável, reminiscência indestrutível duma cultura milenária fundada no primitivo culto aos deuses ligados à Mãe-Terra. E quanta verdade ela contém ainda hoje, basta ver os humanos fracos e impotentes, de repente tornados suplicantes baratas tontas ou caçadores ferozes pela sobrevivência, face às grandes catástrofes naturais.

Um dia o Virgílio não sabia a lição nem fizera os trabalhos de casa. A professora Ermelinda, como costume na época, aplicou o método pedagógico padronizado oficialmente acrescentando o seu rigor pessoal. Depois das inevitáveis "reguadas", mandou-o pôr-se de braços abertos na rua, sem se mexer, virado para a parede e vigiado: quando já não aguentava e deixava cair um braço levava uma varada nesse braço. O moço Virgílio, bravio pastor de cabras, salta valados, trepador de árvores, corredor descalço por caminhos de pedras e matos, lançador de pedras certeiras, atirador de fisgas e fundas, pássaro livre como taralhão mosqueiro, jamais podia sujeitar-se a tal insuportável castigo. Sentido na pureza da sua inocência incompreendida e ferido na sua bravia liberdade instintiva, agarrou a vara do vigia, deu-lhe com ela e fugiu da escola a sete pés.

Desde esse dia, abalava de casa com a bolsa dos livros às costas, fingia que ia para a escola mas passava o horário escolar atrás dos pássaros. Passava o tempo de aulas vigiando o movimento dos pássaros para descobrir os ninhos deles escondidos nas árvores. Pelo caminho, desde casa até perto da escola, já descobrira alguns de pintassilgos, pintarroxos, e até de cotovias, feitos na terra no meio do trigal, e um de pôpa, feito de caca e penas, numa toca de alfarrobeira. Foram dias felizes a estudar com a natureza, a ganhar destreza e argúcia jogando às escondidas com os pássaros e observando as lições de astúcia e maravilha que eles davam no trabalho minucioso de fazer as suas redondas e fofas casas perfeitas. E maravilha maior, faziam-no com alegria tal que a celebravam com cantes e gorjeios que o maravilhava mais que os cantes dos pintassilgos que tinha em casa na gaiola.
Esta felicidade à solta e livre como passarinho, fazia-o feliz e esquecer a escola. O pior era quando chegava a hora do regresso a casa e tinha de mentir à mãe e ao pai, que entretanto regressara inesperadamente de França, sobre o facto de andar "fugido" à escola e isso metia-lhe medo e trazia-o apoquentado.

Inevitavelmente, um dia a notícia de que andava "fugido" à escola tinha de chegar aos ouvidos da mãe. Esta ainda quiz encobrir e depois desculpar o procedimento do moço perante o pai que viera de França há semanas e já embirrava com o filho por tudo e por nada. Por sua vez o Virgílio, que não conhecera o pai e via agora, de repente, aquele homem estranho, que mal chegado a casa passara a dar ordens a todos, até à mãe que o criara e sempre tivera e respeitara como a dona da casa, via o pai como um intruso que viera perturbar a boa harmonia da família. Tanto mais que, além de dar ordens à bruta com ameaças já tinha batido numa moça e corrido atrás dele para lhe bater sem conseguir.
Estando as coisas neste pé, a "falta" grave do Virgílio era o pretexto ideal para o pai demonstrar e impôr a sua autoridade definitivamente em casa. Quando soube do que se passava, apesar e contra a defesa da mãe, agarrou o Virgílio e deu-lhe uma sova que o deixou doído a sangrar. Contudo a dor maior era sentir o sangue ferver-lhe no coração, tão grande que lhe rebentava nos olhos e queimava as faces, tão forte que lhe pôs os cabelos em pé e o pequeno peito a saltar, tão sentida que jurou ali mesmo a sí próprio, que nunca mais na vida deixaria aquele homem bater-lhe.

Uns dias depois, juntou os poucos trapos remendados que possuia, meteu-os dentro de uma saca que meteu às costas e abalou, estrada fora a caminho das hortas, a pedir trabalho como "moço de servir". Numa horta do Rio Seco, aceitaram-no para moço de servir na cozinha da casa e tratador do gado e das cabanas dia e noite.
A sua escola voltou a ser ao ar livre junto da natureza viva das plantas e animais, a sua carteira era o catre onde dormia e sonhava ser sábio sem livros e estudos, a sua caneta de aparo era a forquilha e enxada e a tinta o estrume azedo dos animais com o qual escrevia riscos sobre a terra que dava o pão e os frutos. Aprendeu, para sempre, a gostar da fragrância do estrume dos animais que fermentava a terra e os frutos saborosos, tal como a massa azeda de farinha que fermentava o pão precioso.
Nesta escola da vida ao vivo, andou tantos anos quantos tinha quando nela ingressou. E só voltou a casa depois do pai morrer.

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