sexta-feira, novembro 25, 2011

UMA HISTÓRIA GORJONENSE, UMA HISTÓRIA PORTUGUESA

"Três dias depois da ofensiva do Somme, os alemães preparavam-se para uma nova ofensiva ao longo da frente britânica, mais a norte, com a intenção de lançar 40.000 granadas de gás contra Armentières, no rio Lys.
A 9 de Abril, depois de um bombardeamento que durou 24 horas, iniciou-se a Batalha de La Lys; quatro divisões alemães contra a divisão portuguesa; 6.000 prisioneiros portugueses. Um batalhão de portugueses recusou-se entrar nas trincheiras. A confusão foi total quando os alemães descarregaram 2.000 toneladas de gás mostarda, fosgénio e difénilcloroarsina"

Martin Gilbert
in "A primeira Guerra Mundial"
Esfera dos Livros


O Soldado raso José Pires Pinto, filho de Bárbara Pires Pinto, irmã do meu avô paterno, todos naturais nascidos e criados como modestos camponeses rurais deste lugar chamado Gorjões, terra perdida de povo isolado e ignorado do mundo no meio do Barrocal algarvio, a 14 Kms de Faro, 300 Kms de Lisboa e 2.500 Kms de Armentières junto ao rio Lyz na Flandres francesa, por um incrível e fatídico acaso de destino pessoal estava lá, nesse dia trágico, na frente inglesa junto ao rio Lys.

Sem nunca ter saído da sua pequena e desconhecida aldeia, sem nunca ter visto um alemão, um francês ou um inglês na sua vida, este gorjonense, simples trabalhador da terra e dos frutos secos do Barrocal algarvio, estava metido entalado e encharcado na lama das trincheiras em terra francesa, na linha da frente inglesa contra os alemães. E não estava só ele destes lugares, muitos outros estavam como ele tiritando de frio e fome, colocados ao longo das trincheiras feitas rios de água e lama com as chuvas e nevões e também infestadas de ratazanas que iam aos restos dos mortos e das marmitas.
Ratazanas a quem, segundo relato do meu pai, também José Pinto e primo do Soldado raso José Pires Pinto, que também lá estava, os nossos Soldados chamavam um petisco quando apanhavam alguma para comer em dias de fome que eram, foram muitos e constantes.

Alerta e firme na trincheira frente aos terríveis e impiedosos alemães à espera do dia seguinte para ser rendido, talvez já cheirando e sentindo o prazer duma casa, uma cama e um prato quente cheio comido sentado à mesa, afastado dos bombardeamentos diários, o nosso Soldado é apanhado de surpresa no centro do alvo da barragem de metralha, fogo e gás que caía sobre as trincheiras do mesmo modo que antes costumava cair chuva, neve e granizo fortes.

A primeira monstruosa e ininterrupta barragem de milhares de granadas de canhões de grosso calibre caindo sobre o nosso Soldado, entrincheirado a céu descoberto, obrigou-o a preparar-se de armas, capacete e máscara para aguentar o embate das granadas de aço e gás das armas pesadas e depois, o combate corpo a corpo que era costume dar-se após os bombardeamentos de abertura, em massa. Ouviu durante horas as granadas assobiarem à sua volta e viu, durante tempo igual, os vulcões de terra, pedras e fogo que saltavam do chão à sua frente deixando o solo salpicado de montes e crateras por todos os lados.
Já não conseguia ver nada à sua frente nem ao seu lado tampouco mas já descortinava perto de si, Soldados caídos no fundo da trincheira. E não demorou muito a sua vez de sacrifício de sangue próprio, por terra alheia e estranha. Uma gigantesca granada caiu junto do seu buraco e leva ao ar, como se fora tudo uma leve pena, o nosso Soldado que tomba no chão tão inerte como a terra e as pedras que com ele voaram.
Também a arma e a máscara anti-gás lhe voara da cara e tombaram no solo como ele, feridas e inertes cada um por seu lado. Inanimado no chão, ficou de pulmões abertos sujeitos às nuvens de gás mostarda e outros que os alemães alternavam nas granadas dos seus canhões e enviavam sem contemplações luteranas pela vida humana.

Nos primeiros anos de quarenta do Séc. XX, ainda antes mas sobretudo depois quando andava na escola primária, habituei-me a ver passar um "velho" de barbas grandes, meio esfarrapado e meio descalço, sempre curvado, que não falava nem sequer olhava para as coisas ou pessoas. Transportava sempre consigo uma saca aos ombros com o fundo caído sobre as costas sob o peso de uns quantos restos de pão que eram a base de sua alimentação diária.
Todos os miúdos escolares estavam avisados pelos grandes de que não se metessem com o "velho" maluco, porque podia apegar-lhes o mal e os piolhos.

Sempre do mesmo modo, com o mesmo andar curvado e miudinho, olhar fixo no caminho e segurando com a mão a saca dos restos de pão seco sobre os ombros, aquele "velho" de barbas esbranquiçadas enormes, chapéu, roupa e botas rotas e remendadas, com ar de mendigo daquele tempo, mas que não pedia nada nem falava nunca com ninguém, passava os dias, semanas, meses e anos, para trás e para a frente num vai-vem permanente, sempre igual e indiferente a tudo e ao tempo.

Era o "Zé da Barba Pinta" como lhe chamava todo o povo dos Gorjões e só por esse nome era conhecido. E também conhecido por todos mais velhos como o que ficou "parvo" em França por causa de uma bebida envenenada que as "meninas" francesas lhe deram a beber. E conhecido no lugar por todos mais jovens, como o "parvinho".

Perdida, por gaseamento na guerra, a sua capacidade de pensar e racionalizar o ser com o meio circundante, perdera a sua humanidade e consequentemente qualquer objectivo ou finalidade de vida. Sem pensamento inteligente, perdida a parte misteriosa e transcendente do homem que guia o corpo, ficara impedido de questionar-se e conhecer-se a si próprio, ter consciência de si e dos outros: perdera a sua identidade.
Sem identidade e finalidade de vida própria, ficara reduzido apenas ao instinto natural primário da necessidade de subsistir ou, existir como carne humana desprovida de vontade e sentido existencial, sem alma.


E assim foi e viveu, pisando sempre as sua próprias pegadas, sem mudar sequer de berma na velha estrada esburacada de macadame, durante quase cinquenta anos, sob o tecto e carinho de sua irmã, Maria Pires Pinto.
Sem um réis ou um centavo de ajuda oficial, nem como deficiente combatente, apenas ajudado por alguns velhos pequenos proprietários que algumas vezes lhe metiam um pão caseiro no saco, e nas festas de comemoração da batalha de La Lys em 9 de Abril, quando os velhos companheiros de Flandres, faziam questão de o satisfazer com pão e carne assada com fartura, do boi ou carneiros que matavam nesse dia para o banquete comemorativo.

Assim foi e viveu, até que a noiva negra o veio tirar da vida de sombras em que mergulhara naquela madrugada trágica, transmutando irreversivelmente, o saudável, garboso e consciente Soldado raso José Pires Pinto, num fantasma ambulante sem alma com imagem de gente sem ser pessoa, a quem o povo designou para sempre como, o "parvinho" Zé da Barba Pinta.

Afinal foi, era, um herói trágico desconhecido.

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