sexta-feira, novembro 06, 2015

A UTOPIA DE JOSÉ PINTO CONTREIRAS 1


FORMAÇÃO; "O LOUCO"

Havia um ruído de conversa na Capela de Santa Catarina de Gorjões e o padre, incomodado para se fazer ouvir no sermão, levantou a voz e disse:
Calados. Estejais calados! Esta é a casa de Deus e deveis estar em completo silêncio e respeito sobre este chão sagrado.
Uma voz do fundo da Capela respondeu: Mais sagrado é a terra que dá o pão e cria os animais que nos ajudam e alimentam.
O padre levantou alto a voz e perguntou: Quem falou? Quem falou?
E a voz do fundo respondeu: Fui eu, fui eu, e repito, mais sagrado é a terra que dá o pão e cria os animais que nos ajudam e alimentam como os ratos que os soldados portugueses comeram nas trincheiras de La Lys para não morrer de fome.
Fez-se burburinho e de seguida alguns homens saíram da Capela entre eles o homem do fundo que respondera ao padre.

Era um descendente em quarta geração da família que nos finais do Séc.XVI se instalou nas terras frescas e planas da Caramujeira com plantação, seca e venda de tabaco naquele tempo chamado negócio de “estanco” que, por sua vez, deu nome ao local, ainda hoje dito Estanco, e aos descendentes dessa família original, gerações depois, baptizados e registados com o nome “Estanco”.
Chamava-se José Pinto Contreiras e era filho de Maria da Conceição Estanco, mulher seca, severa e austera, e Manuel Pinto Contreiras, homem gordo sereno e bondoso, pequeno proprietário que foi em sociedade com os dois outros Estanco, seus cunhados, dos primeiros empreiteiros de caminhos, pontes e estradas do Algarve ainda no Séc.XIX.

O Pai Manuel, depois da aprendizagem das letras e contas na “Escola Paga” de Mestre Raul obrigou-o a frequentar a “Escola Oficial” em Santa Bárbara de Nexe a cinco kms de distancia que todos os dias tinha de fazer a pé por caminhos de pedras à ida e vinda.
Foi, nos primeiros anos do Séc.XX, dos raros miúdos locais a escolarizar-se com a 4ª classe. Depois como rapaz e adulto tornou-se interessado pela leitura de jornais e livros e acompanhava as discussões político-ideológicas entre os vários partidos que combatiam a monarquia na altura.
Aplaudiu e acompanhou a implantação da República, a discussão ideológica e consequente formação de partidos, conheceu Raul Proença que casara com uma parenta sua e que o influenciaria muito pela leitura da Seara Nova, Blasco Ibañhez, Victor Hugo, Proudhon e outros.

À sua humanidade amiga da vida das pessoas que desejava vivessem numa sociedade solidária harmoniosa progressista, aliava a sua formação cultural adquirida pela leitura de pensadores considerados vanguardistas próximos do seu entendimento e visão do futuro.
Foi, tendo como suporte essa visão para além do seu tempo que, enquanto realizava os trabalhos para execução da sua utopia local, contra a mentalidade corrente e familiares, após a conclusão da Escola Primária, mandou estudar para Faro todos os filhos depois dos dois mais velhos.
Uma aposta no futuro que foi uma ousadia pioneira no Sítio e rara na Freguesia, que valeu a todos atingir níveis acima da escolaridade primária e a três desses filhos, com meios escassos, atingirem um nível de estudos superior.
Estas medidas inéditas, tomadas num meio rural instruído por uma sociedade elitista que ensinava e educava no sentido de instituir uma mentalidade moral tradicionalista baseada nos valores e trabalhos da terra e dos ofícios para a população pobre e remediada, foi mais um choque emocional na mente e opinião ingénua do povo que, perante esta estranha e incompreensível visão deste Homem que até falava e previa o amor livre no futuro levou, os julgados mais espertos e avisados mas na realidade mais limitados e ignorantes, não raras vezes, a lhe chamaram de "louco".

(continua)

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1 Comments:

Blogger Unknown said...

Em tempos de enfraquecimento e de valores e menosprezo de utopias é bom sabermos que há quem valorize e honre os antepassados e o seu papel na construção do nosso devir.
Gostei e vou esperar pela continuação.
Abraço,
AN

4:58 da manhã  

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