quinta-feira, dezembro 12, 2019

PRETEXTOS E BODES EXPIATÓRIOS HÁ PARA TODOS OS GOSTOS

Depois de um estudo aturado, estruturado e sobretudo fundamentado de Valério Bexiga acerca de como, logicamente segundo os dados apurados, terá acontecido o julgamento e condenação de Jesus; primeiro frente aos "principais judeus", homens do Sinédrio chefiados por Caifás, segundo perante o delegado do império romano, o Prefeito Pôncio Pilatos, é quase uma tentação querer fazer uma incursão por alguns grandes julgamentos históricos.
A apologia dos crentes deserdados e mal tratados pelos romanos de que Jesus era o Messias, salvador e vingador dos sofrimentos do povo judeu e, logo após sua crucificação e morte seguida do milagre prodigioso de uma ressurreição, deu asas a uma cristologia dos seus apóstolos e seguidores e muito especialmente de Paulo que transformou Jesus num Deus filho de Deus e Deus igual ao Pai que veio ao mundo feito homem e se deixou martirizar e morrer para redimir os pecados dos homens, isto é o redentor.
Esta é a versão cristológica de toda a escritura religiosa bíblica e outras tal como nos chegou  interpretada e ditada por homens face a um Deus mudo.
Mas será que subjacente e por detrás de toda e qualquer narrativa instituída, em qualquer tempo e lugar, que defende ferozmente quem a instituiu e seus propósitos oficiais não está, precisamente, uma luta de poder?

Já vimos que Jesus foi, para além de todo o aparato e sentido religioso que lhe foi sendo dado até hoje, julgado pelos dois detentores do poder na Cidade (polis) em Jerusalém; pelo poder político-religioso judaico instituído no Sinédrio, sua cúpula, e pelo poder político-militar do Império Romano na pessoa do Prefeito Pilatos.
Jesus, na peugada de Baptista, tornara-se um estorvo revolucionário para a elite dos judeus serventuários do poder romano quer na pregação anti-situacionista quer na acção ao entrar em Jerusalém como Messias rodeado de uma multidão de correligionários e enfrentar os vendilhões do Templo.
Face a tal audácia e rebeldia a situação no governo da Cidade tornou-se insustentável pelo que os "principais judeus" resolveram prender Jesus e para tal corromperam Judas um dos seus apóstolos.
Fica evidente que se o julgamento de Pilatos foi única e exclusivamente politico-social por tentativa de rebelião ou sublevação também o julgamento pelos "principais judeus", elite do Sinédrio   comandado pelo Sumo-Sacerdote Caifás teve, como pano de fundo, a mesma rebelião e sublevação politico-social que punha em causa o grande poder da elite teocrata situacionista.
A questão religiosa foi, naquele tempo como ainda hoje é, apenas o pretexto conveniente.

Mas, indo muito para aquém da história registada em pedra ou papiros, a mitologia traça essa luta arcaica pelo poder até à proto-história do indivíduo quando o rei no poder mata ou abandona o filho por que os oráculos e augures lhe dizem que tal filho é uma futura ameaça ao seu poder.
O deus Cronos matou todos os filhos até Zeus ser salvo da brutalidade do pai por um estratagema e depois destituir o pai do poder (guerra dos titans ou cíclopes) dando origem à divina geração Olímpica.
E qual o significado devemos dar ao facto de, hoje em dia, os próprios padres da Igreja praticamente não invocarem o antigo Deus mas o recente Jesus, Deus filho? 

Também Sócrates, o filósofo grego, foi acusado e condenado por corromper os jovens e por sacrilégio de ser contra e não aceitar os deuses instituídos, os Olímpicos.
Contudo a principal causa de perseguição à sua pessoa foi a sua acção politico-social de sublevar a mentalidade e os valores da juventude filhos da elite aristocrática e futuros dirigentes da polis ateniense.
Foi o sentido político do ensino socrático, algo subversivo contra o estabelecido bom-senso vulgar e o rancor que todos os homens medíocres nutrem pelos de inteligência superior, o qual Aristófanes satirizou e combateu ferozmente e pelo qual os políticos Metelo, Ânito e Lícon o acusaram e o tribunal de 1500 jurados, de maioria de povo ignorante para perceber a filosofia do acusado, o sentenciou à morte.
Mal o cadáver tinha sido enterrado e já o povo de Atenas se revoltava contra quem provocara tal condenação.
     
Vejamos o caso Joana D'arc, outro famoso processo de engano tratado, disfarçadamente, sob a capa de um processo religioso perpretado pela inapelável certeza da fé na crença usada pelo tribunal da Inquisição, de má memória.
No dia 30 de Maio de 1431, na praça do Vieux-Marché, em Ruão, Joana d'Arc é queimada viva. O tribunal, convocado pelos ingleses e presidido por Pierre Cauchon, bispo de Beauvais e lacaio dos ingleses, declarou-a herética e relapsa.
Joana d'Arc, jovem donzela pastora analfabeta do lugar de Vouthon, Domrémy no enclave francês de Vaucouleurs, nascida em 1412, em plena Guerra dos Cem Anos entre ingleses e franceses pela disputa da coroa do reino de França entre Henrique V de Inglaterra e o "Delfim" Carlos VII de França (cognominado "Rei de Bourges" dado os seus poucos domínios face ao dos ingleses), concebe a ideia de que pode salvar a França e convence o "Delfim" a entregar-lhe um comando militar para conquistar Orléans cercada pelos borgonheses, aliados dos ingleses.
Imbuída de uma fé mística e visionária inflamada de patriotismo francês incita à coragem sem medo os soldados em nome do seu Senhor, o Rei do Céu, que lhe prometera correr com os ingleses e sagrar o "Delfim" como o legítimo herdeiro da coroa e Rei de França.
A "Donzela", como lhe chamava a soldadesca, com os seus incitamentos em nome do seu Senhor Rei do Céu e usando uma estratégia agressiva de antecipação conseguiu vitórias sucessivas começando na libertação dos franceses no cerco de Orléans até que no assalto a Paris, em Compiègne é feita prisioneira e entregue ao duque de Borgonha, Filipe o Bom, aliado dos ingleses. Este por sua vez, mancomunado, com os borgonheses João do Luxemburgo, general comandante de Paris e Jean de Ligny da Universidade, vendem por elevadíssimo preço Joana aos ingleses pela interposta pessoa de Cauchon, bispo de Beauvais segundo o manhoso argumento; "em cuja diocese foi capturada".
Joana é levada para Ruão na Bretanha continental que era território inglês para ser julgada por um tribunal da Inquisição dirigido integral e tendenciosamente pelo bispo de Beauvais Pierre Cauchon, um homem de mão dos ingleses que vivia a soldo destes.
Tudo foi tratado, aparentemente, muito legal e muito religiosamente à luz do dia segundo preceitos do regulamento inquisitorial cristão, contudo, as maldades e manhas desumanas feitas na sombra para desacreditar, culpar e condenar Joana foram pré-concebidas desde a sua prisão em Ruão.
Em Orléans o chefe militar dos ingleses, Glasdale, proclama; "Feiticeira, se um dia te te apanhamos, queimamos-te!" Mas, mais oficialmente, a vontade inabalável de liquidar Joana está expressa na carta de Warwick, governador do castelo onde Joana está presa, de 25 de Fevereiro de 1431 dirigida aos médicos que cuidam dela, recomenda: "O Rei (Henrique V) não quer, custe o que custar, que ela morra de morte natural, pois Joana sai-lhe cara e ele, na realidade pagou por ela um alto preço. Ele entende que ela deve morrer por determinação da justiça e que seja queimada".
No fundo, pouco interessava aos ingleses que ela fosse crente fervorosa e invocasse receber ordens do além divino; interessava sim, e apenas, que ela não vencesse os ingleses e lhes conquistasse praças e cidades para os franceses.
E também, ó fraca natureza humana, o próprio Calos VII que ela fez Rei e a sua corte de conselheiros e chefes militares suportavam de má vontade os êxitos militares e popularidade de Joana nas ruas e praças libertadas e, disso é prova, a falta de efectivos no ataque a Paris, a não presença de Carlos VII na batalha e as contra-ordens durante o ataque perpretado por iniciativa de Joana, além de questões de negócios particulares, contribuiram a seu modo para a derrota definitiva de Joana d'Arc.
Novamente um pretexto, embora vindo do imaterial além, mas mais sentido e aceitável ao bom povo, serve de bode expiatório para ocultação dos verdadeiros motivos, causas e consequências das acções humanas.   
Vinte e cinco anos mais tarde Joana será reabilitada e considerada heroína nacional francesa o que atesta a qualidade do seu trabalho político ao serviço da França.
E cinco séculos depois a Igreja decidiu beatificar e canonizar Joana dando o dito por não dito para redimir-se de sua própria tentação política por mão humana.
Afinal eram as "vozes" que ouvia que lhe inculcavam aquela estranha e extraordinária força ou era a sua estranha e extraordinária força de natureza que lhe faziam ouvir as "vozes"?
O mistério continua, agora, envolto na sua lenda imortalizada.           

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