ACERCA DA SAPIÊNCIA NET
Há tempos era um familiar que me dizia que hoje em dia quase nem era preciso os alunos passar anos e anos numa aprendizagem escolar de tanta matéria, muita da qual é para esquecer, quando todo o saber está na Net à disposição de um clic. A última foi há dias quando alguém que se considerava um expert em covid porque construíra, a partir da Net, argumentos de contestação a tudo quanto dizem os especialistas oficiais de saúde e a imprensa faz eco e me aconselhava, assim; - É que estás um bocadinho desinformado, vai à Net, informa-te não vejas só a comunicação social. Vais ver que ficas com outra percepção da pandemia.-
Contudo a questão de fundo está no facto de saber se posso esclarecer-me confiada e acertadamente consultando a Net ou mesmo os livros; ambos são aglomerados de saber tanto falso como verdadeiro. E a possibilidade de falsidade aumenta tanto mais progressivamente quanto a liberdade de qualquer um, anónima e irresponsavelmente, ditar opiniões como se fora teorias filosóficas quando não se dedicam a construir falácias científicas sobre pressupostos falsos ou, mesmo, inventar factos fictícios descritos de forma a poder retirar conclusões aparentemente verdadeiras que levem ao engano incautos e ignorantes, como é o caso flagrante da Net.
Esta, neste aspecto, vai muito para além de uma enciclopédia que nos dá um significado e uma
noção rápida sobre determinado assunto pois, discorre e
nos explica rapidamente acerca de uma multidão de teorias filosóficas,
científicas, linguísticas, históricas, esotéricas, éticas, religiosas, mágicas,
psicológicas e até da conspiração; está lá de tudo misturado sem classificação ou qualificação, é só procurar e escolher a que precisamos
no momento. Claro, consultar a Net dá-me uma imensidão de percepções, tantas quantas as perspectivas daqueles que enchem as suas páginas; mas como distinguir as falsas das verdadeiras?
Sobretudo há uma diferença intelectual incomensurável ente o saber presente na Net e o saber presente no nosso conhecimento; na máquina o saber nela digitalizado é para a vida humana um consultório enquanto o saber em nós acumulado pelo estudo sistemático é um pensatório. Pois, num lado eu vou consultar o saber acerca de assuntos de per si individualizados e desligados de tudo mais enquanto no outro lado, mal qualquer assunto vem à discussão, tenho um conjunto vasto de assuntos, relacionados ou não, presentes simultâneamente e posso imediatamente fazer racionalizações por ligações e comparações lógicas, associação de ideias, inferências e deduções, isto é, entro automaticamente em trabalho de pensar.
Claro que a Net é útil, especialmente, a quem já possui o tal conjunto vasto de conhecimentos adquirido pelo estudo constante pois, nesse caso, uma consulta para completar, clarificar ou esclarecer mais amplamente um assunto de estudo específico em curso é uma preciosa ajuda. Também neste caso, havendo já parte de conhecimento acerca de determinado assunto pelo estudo, a questão de errar na consulta entre o verdadeiro e o falso é reduzida.
Também é claro que a Net usada, de forma exclusiva ou quase única, como fonte de saber para obter conhecimento qualificado adequado pode tornar-se uma fonte de enganos irreparáveis; primeiro porque pelo seu uso continuado a facilidade de se saber aquilo que se pretende no momento torna-se rapidamente num hábito que não deixa lugar a nenhuma vontade de estudar e aprofundar a sério qualquer assunto; segundo porque dada a profusão de opiniões de toda a ordem e sentido acumuladas na Net podem conduzir-nos a um esquema de produção de teorias erradas que, pela sua aparente linha de pensamento lógico, nos podem conduzir a fazer fé no erro; terceiro, e o mais importante, porque tal método não nos ensina a pensar.
Ora, o saber pensar é a mais importante e poderosa ferramenta do homem para conhecer-se a si próprio, analizar-se e fazer juízos de valor correctos acerca da vida intelectual e prática corrente para, assim, poder avaliar melhor da verdade ou inverdade de uma ideia, uma proposição ou uma teoria; e, claro, para poder e saber pensar é preciso ter um bom conhecimento de estudo contínuo esforçado acerca da história das ideias e da ciência ao longo da nossa civilização.
Acerca do contínuo pensar dos sábios ao longo dos séculos há um fio de continuidade ininterrupto e, simultâneamente, também um ininterrupto questionamento do valor e verdade das propostas dos sábios; por oposição ou por assentimento das ideias dos predecessores os sábios foram sempre precisando, inovando ou acrescentando novos pontos de vista e saberes que fizeram a história da evolução quer da filosofia quer da ciência.
Sempre foi a partir do conhecimento acumulado que os homens sábios pelo método da dúvida céptica ou metódica fizeram suas tentativas de procurar distinguir a verdade da mentira e chegaram às ciências exactas irrefutáveis da geometria, matemática e da física. Porque refutar a verdade ou mentira de uma proposição é sempre passível desde logo pela máxima de Protágoras de que ninguém mente porque "o que eu afirmo é desde logo verdade para mim"; resumindo, cada um tem a sua verdade.
Contudo, esta verdade proclamada por Protágoras, que já por si só é de um relativismo absoluto, se retirada exclusivamente de um consultório de dados e ideias não tratadas e seleccionadas pelo conhecimento e pensamento, facilmente o hábito de uma leitura de sentido único, se transforma numa crença; uma irracionalidade pura, um não-pensamento, uma convicção sem realidade e sem sentido.
O pensamento que rege o mundo é uma corrente mental em trabalho contínuo na perseguição de uma verdade ao contrário de uma crença que é uma imobilidade contínua do pensamento à espera de uma verdade revelada ao mundo; o pensar é um apelo à natureza e vida racional do homem, a crença é um apelo ao sobrenatural. O apelo à Net é a dúvida, a incerteza, uma sorte.
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