sexta-feira, novembro 13, 2020

ACERCA DA SAPIÊNCIA NET

 

Desde há uns anos alguma gente me recomenda "ir ver a Net" para estudar e aprender qualquer assunto que ou não sei mesmo ou pensam que não sei nada do assunto porque os contesto com pensamento diferente do que, eles, adquiriram quando foram à pressa ver-ler na dita Net para, pela primeira vez, pensar algo sobre tal assunto.

Há tempos era um familiar que me dizia que hoje em dia quase nem era preciso os alunos passar anos e anos numa aprendizagem escolar de tanta matéria, muita da qual é para esquecer, quando todo o saber está na Net à disposição de um clic. A última foi há dias quando alguém que se considerava um expert em covid porque construíra, a partir da Net, argumentos de contestação a tudo quanto dizem os especialistas oficiais de saúde e a imprensa faz eco e me aconselhava, assim; - É que estás um bocadinho desinformado, vai à Net, informa-te não vejas só a comunicação social. Vais ver que ficas com outra percepção da pandemia.-   

Contudo a questão de fundo está no facto de saber se posso esclarecer-me confiada e acertadamente consultando a Net ou mesmo os livros; ambos são aglomerados de saber tanto falso como verdadeiro. E a possibilidade de falsidade aumenta tanto mais progressivamente quanto a liberdade de qualquer um, anónima e irresponsavelmente, ditar opiniões como se fora teorias filosóficas quando não se dedicam a construir falácias científicas sobre pressupostos falsos ou, mesmo, inventar factos fictícios descritos de forma a poder retirar conclusões aparentemente verdadeiras que levem ao engano incautos e ignorantes, como é o caso flagrante da Net. 

Esta, neste aspecto, vai muito para além de uma enciclopédia que nos dá um significado e uma noção rápida sobre determinado assunto pois, discorre e nos explica rapidamente acerca de uma multidão de teorias filosóficas, científicas, linguísticas, históricas, esotéricas, éticas, religiosas, mágicas, psicológicas e até da conspiração; está lá de tudo misturado sem classificação ou qualificação, é só procurar e escolher a que precisamos no momento. Claro, consultar a Net dá-me uma imensidão de percepções, tantas quantas as perspectivas daqueles que enchem as suas páginas; mas como distinguir as falsas das verdadeiras?  

Sobretudo há uma diferença intelectual incomensurável ente o saber presente na Net e o saber presente no nosso conhecimento; na máquina o saber nela digitalizado é para a vida humana um consultório enquanto o saber em nós acumulado pelo estudo sistemático é um pensatório. Pois, num lado eu vou consultar o saber acerca de assuntos de per si individualizados e desligados de tudo mais enquanto no outro lado, mal qualquer assunto vem à discussão, tenho um conjunto vasto de assuntos, relacionados ou não, presentes simultâneamente e posso imediatamente fazer racionalizações por ligações e comparações lógicas, associação de ideias, inferências e deduções, isto é, entro automaticamente em trabalho de pensar.

Claro que a Net é útil, especialmente, a quem já possui o tal conjunto vasto de conhecimentos adquirido pelo estudo constante pois, nesse caso, uma consulta para completar, clarificar ou esclarecer mais amplamente um assunto de estudo específico em curso é uma preciosa ajuda. Também neste caso, havendo já parte de conhecimento acerca de determinado assunto pelo estudo, a questão de errar na consulta entre o verdadeiro e o falso é reduzida. 

Também é claro que a Net usada, de forma exclusiva ou quase única, como fonte de saber para obter conhecimento qualificado adequado pode tornar-se uma fonte de enganos irreparáveis; primeiro porque pelo seu uso continuado a facilidade de se saber aquilo que se pretende no momento torna-se rapidamente num hábito que não deixa lugar a nenhuma vontade de estudar e aprofundar a sério qualquer assunto; segundo porque dada a profusão de opiniões de toda a ordem e sentido acumuladas na Net podem conduzir-nos a um esquema de produção de teorias erradas que, pela sua aparente linha de pensamento lógico, nos podem conduzir a fazer fé no erro; terceiro, e o mais importante, porque tal método não nos ensina a pensar.

Ora, o saber pensar é a mais importante e poderosa ferramenta do homem para conhecer-se a si próprio, analizar-se e fazer juízos de valor correctos acerca da vida intelectual e prática corrente para, assim, poder avaliar melhor da verdade ou inverdade de uma ideia, uma proposição ou uma teoria; e, claro, para poder e saber pensar é preciso ter um bom conhecimento de estudo contínuo esforçado acerca da história das ideias e da ciência ao longo da nossa civilização.

Acerca do contínuo pensar dos sábios ao longo dos séculos há um fio de continuidade ininterrupto e, simultâneamente, também um ininterrupto questionamento do valor e verdade das propostas dos sábios; por oposição ou por assentimento das ideias dos predecessores os sábios foram sempre precisando, inovando ou acrescentando novos pontos de vista e saberes que fizeram a história da evolução quer da filosofia quer da ciência.

Sempre foi a partir do conhecimento acumulado que os homens sábios pelo método da dúvida céptica ou metódica fizeram suas tentativas de procurar distinguir a verdade da mentira e chegaram às ciências exactas irrefutáveis da geometria, matemática e da física. Porque refutar a verdade ou mentira de uma proposição é sempre passível desde logo pela máxima de Protágoras de que ninguém mente porque "o que eu afirmo é desde logo verdade para mim"; resumindo, cada um tem a sua verdade. 

Contudo, esta verdade proclamada por Protágoras, que já por si só é de um relativismo absoluto, se retirada exclusivamente de um consultório de dados e ideias não tratadas e seleccionadas pelo conhecimento e pensamento, facilmente o hábito de uma leitura de sentido único, se transforma numa crença; uma irracionalidade pura, um não-pensamento, uma convicção sem realidade e sem sentido.

O pensamento que rege o mundo é uma corrente mental em trabalho contínuo na perseguição de uma verdade ao contrário de uma crença que é uma imobilidade contínua do pensamento à espera de uma verdade revelada ao mundo; o pensar é um apelo à natureza e vida racional do homem, a crença é um apelo ao sobrenatural. O apelo à Net é a dúvida, a incerteza, uma sorte.

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