domingo, março 07, 2021

A GUERRA COLONIAL: EMBARCAR OU DAR O SALTO. 2

Terminámos a parte 1 com a conclusão de que dar o salto, sendo comum a desertores e a emigrantes, tem significados diferentes porque partem e derivam de situações e intenções de vida completamente díspares e até opostas; ao desertar um ex-aluno candidato a Oficial do exército comete um acto político e requer o estatuto de exilado político; o aprendiz de pedreiro requer o estatuto de trabalhador indiferenciado  e requer trabalho e residência; um usa o salto como meio de continuar a ser um homem político o outro usa-o para fazer do trabalho puro e duro a sua política.    

Estamos, portanto, perante uma grande disparidade de motivações e fins que, consequentemente, se reflectem e vão dar origem a uma igual grande disparidade entre combatentes de armas na mão e exilados desertores mesmo que de uso de palavras e caneta na mão; estes continuarão sendo uma elite mais ou menos comodamente instalada em Paris ou Estocolmo sem correr riscos ao contrário dos combatentes que isolados no meio da mata correm risco de morte dia e noite ininterruptamente todos dias cada 24 horas do dia.

Esta disparidade de situações é bem evidente quando, sempre que discutimos com desertores exilados estes, desabafam que sempre se sentiram bem no exílio, satisfeitos, não arrependidos de nada, foram e vivem agora felizes com as suas memórias, sentem-se do lado certo da história, não há entre eles deficientes físicos nem mentais, não há qualquer problema nacional com os desertores e exilados da guerra.

E com os combatentes? Podem os combatentes sentir-se bem, satisfeitos, contentes, felizes com o que passaram isolados no meio do mato alimentados a ração de combate, a comer o pó das picadas, a passar dias a pé por carreiros e trilhos à intempérie ora ao sol tórrido sem água no cantil ora sob chuva e lama sem abrigo; pode alguém sentir-se bem depois de ver o seu melhor amigo do acampamento tombar na picada ao seu lado, de repente? 

Como podem os combatentes ser abertos, alegres ou sentirem-se bem e contarem histórias fora do seu grupo de camaradas quando a única coisa boa que lhes aconteceu foi terem voltado vivos da guerra? Como podem os combatentes contar histórias sentimentais do tipo o salto do desertor se foram obrigados a deixar familiares, mulheres e filhos pequenos, noivas, namoradas, ofícios, amigos, festas e vidas felizes nas suas aldeias  para embarcar e viajar aos trambolhões no fundo de porões dos navios transatlânticos onde mal respiravam por um tubo de lona que vinha da parte emersa do navio e onde nem conseguiam manter-se em cima das tarimbas quanto mais dormir? E mal desembarcados imediatamente enviados para o interior de uma guerra de guerrilha em plena selva africana que lhes tapava o céu e toldava os sentimentos donde brotavam lágrimas secas para não serem vistas. 

Para o combatente não houve salto para uma história feliz mas sim um assalto à sua felicidade de simples e puro aldeão analfabeto aprendiz de um ofício ou trabalhador de sol a sol nas suas pequenas parcelas de terra arável. E depois da guerra, novamente entregues à sua sorte, tiveram de emigrar a salto  ou por carta de chamada onde depararam com outra guerra de sobrevivência pelo trabalho duro no bâtiment e preocupações de chamar mulheres e filhos para os safar de irem, também eles, parar à mesma guerra que os pais.

Contudo, mesmo do interior de tão grande desumana maldade como é uma guerra, ainda assim se podem extrair alguns casos que são exemplos para o futuro; a amizade e solidariedade humana que se estabelece entre camaradas de armas no isolamento dos acampamentos no mato; o real conhecimento das nossas capacidades de sofrer e saber aguentar sem se ir abaixo; o aprender a sobreviver em condições de total isolamento sem habitação, higiene e sob perigo de morte constante; a unidade, lealdade e entreajuda fraterna, limpa, verdadeiramente amiga e desinteressada estabelecida entre todos. 

Estas condições de vida comum dura e perigosa igual para todos foram parte da formação de soldados para melhores e mais experientes homens aptos a enfrentar as lutas posteriores da vida civil; realmente a sua conduta posterior até hoje é mais de ouvir, observar e compreender do que falar ou contar histórias tristes aos contrário de outros; eles sentem e sabem que a história acabará por dar-lhes razão quanto mais não seja porque estiveram do lado dos que sofreram e deram o sangue em sacrifício de nada; sentem e sabem que foi, sobretudo, o sacrifício sem sentido de suas vidas jovens, umas perdidas para sempre e todas durante dois anos de vida de juventude, foi dizia, o maior e decisivo contributo para uma tomada de consciência e revolta das forças militares portuguesas.

E tanto é assim que são os nomes de combatentes mortos ou sobreviventes que já começam a estar inscritos em pedra de pequenos monumentos e memoriais levantados em sua honra por cidades, vilas e aldeias. 

E até poderão, em tempos posteriores, alguns querer rever o passado de hoje para redefinir e alterar a história e querer deitar abaixo tão modestos honoríficos memoriais sob o pretexto de  comemorar outra coisa oposta ou diferente que, nem por isso, os combatentes deixarão de ser aqueles que estiveram, obrigados, do lado dos sacrificados em vão, para mais, iludidos por mor de falsos valores. 

Etiquetas: