OS PEQUENOS DEUSES DIVERTIDOS
Não, vou falar dos nossos deuses menores homens e mulheres portugueses mais ou menos comuns que, tal qual os meninos do povo se divertem nos jardins infantis imaginando ser bombeiros e cabeleireiras, se imaginam e auto-convenceram mesmo que são verdadeiros delegados píticos dos deuses do céu omniscientes; isto é, que participam em alguma dose mínima da omnisciência divina que lhes dá o poder de presciência sobre o futuro.
Realmente, a partir de suas interpretações pessoais de factos e acontecimentos diários, pelas suas visões individualistas acerca das falas e exposições de outrem quer sejam sábios, técnicos qualificados, governantes, políticos experientes e, sobretudo, acerca de qualquer decisão importante tomada sobre o que quer que seja estes deuses-míni-infantis hão de ter sempre uma opinião mui especial e diferente; que julgando eles participar do ser de deuses, embora em dose mini-míni irreconhecível, não podem consentir que qualquer mortal, mesmo que tenha matado a vista e a cabeça a estudar o assunto, tenha opinião mais sábia e fundamentada; como tal, do alto do seu pensar e saber julgado adquirido por via directa do toque mini-divino logo as trombetas dos anjos mediáticos comunicacionais se dispôem para anunciar a sua verdade sobre qualquer assunto acerca do qual eles ditam a versão certa, definitiva, confirmada, fechada e sacralizada com uma risada geral em comum e uníssono em jeito de grande final coral dos pequenos deuses contentes e cheios do seu estatuto acima de gente mortal; só quando, raramente, vestem roupagem mental de tons de cores algo diferentes desafinam um pouco nos pormenores da oracular verdade canónica taxativa.
Assim é porque cada um dos auto-convencidos pequenos deuses que têm assento no parque infantil de divertimentos dos media ditam oráculos não pela boca do seu deus totémico mas sim pela sua língua e boca que lhes dita uma faladura de verdade de seus próprios pensamentos, sonhos e pesadelos; a sua deles sofística argumentação e faladuras proclamadas com falsa assertividade e convicção são auto-biográficas ou, melhor, são a biografia dos seus desejos.
E como não há pensamentos precisamente idênticos também não há desejos idênticos nem biografias coincidentes; na generalidade botam faladura ao sabor dos factos que acontecem ou aconteceram a si próprios; se lhes acontece um mal ou são mal tratados lá fora tecem cobras e lagartos do país do acontecido e elogios ditirâmbicos ao seu país mas se lhes acontece cá dentro o seu país é a maior desgraça e porcaria do mundo desde Afonso Henriques que até bateu na mãe, como pensam; Portugal é sempre, para eles, uma desgraça, uma vergonha, a choldra como desde há mais de um século alguém o apelidou; isto é, o bombo da festa que faz a alegria no jardim infantil dos meninos-deus prodígio ensinando aos sábios no templo dos vendilhões de media.
Também na generalidade todos debitam opinião escrita diária ou semanalmente mas é no jardim infantil que se requintam para a notoriedade; uns ao seu estudado estilo literariamente rebuscado e floreado opinando sobre tudo para não dizer nada e não se comprometerem ou servem-se de casos pessoais para dar recados ao mundo da sua importância; outros fazem chalaça humorística ad hominem expressando que lhes vai no fel uma vontade enorme de assassinar o carácter de alguém que não lhes bate palmas; outros arrasando tudo a eito para assim poderem acertar em alguma pequena coisa e depois, ufanos, repetir e repetir, eu avisei, eu fui o primeiro a dizer...; outros dão saltinhos na cadeira do jardim infantil quando descobrem um argumento julgado "irrefutável" e assim ficam aos saltinhos de contentes pela descoberta; outros atacam os governantes em apoio de opositores como quem anda com um escadote às costas para subir tão alto um dia quanto o frete feito; e mesmo algum que parece saber pensar e argumentar com lógica, que parece ser sério e falar por si próprio, que é mais racional e subtil na exposição das opiniões, esse mesmo não consegue sair do registo auto-biográfico dos seus interesses e desejos, como é próprio da condição do homem político, para mais, crítico apaparicado.
A bíblia diz que Deus criou o mundo em seis dias e descansou ao sétimo; pois estes novos deuses criam e recriam o mundo todos os dias hora a hora, não sem descansar, mas sim não dando descanso aos outros; alguém que pense fora do mundo da caixa é tratado como herege, como fora da realidade criada na hora diariamente, como um distraído, lunático ou ignorante que não conhece o mundo da caixa deles virtual e falso, como inadaptados à realidade (virtual) criada por estes pretensos deuses impantes de ego criador mas não criativo; um deles, quando acaba, mais uma vez, de recrear o mundo até pisca o olho e deixa no ar um sorriso de intimidade com o seu mundo pessoal como se fora um sinal comunitário à maneira de João a baptizar os crentes no rio dos media.
Estes sim, todos eles, vivem fora do mundo real vivo, visível e invisível, sempre em mudança imperceptível e insondável; estes sim, vivem no mundo ora de suas fantasias, sonhos, medos e pesadelos ora usando do truque de "inversão de papéis" colocando-se na posição de outrem e desse modo formar juízos sobre os seus próprios preconceitos e falsificar o outro; estes sim, dada a digitalização e instantânea globalização da informação por cada vez mais e mais sofisticadas redes sociais anunciando mudança de paradigma, vivem iludidos de sua virtual realidade; estes sim, lutam contra carneiros e moinhos por dulcineias de que é feito o seu mundo fictício em vias de desaparecimento rápido.
Etiquetas: os pequenos deuses divertidos
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home