quarta-feira, março 24, 2021

OS PEQUENOS DEUSES DIVERTIDOS

 
Não vou falar dos deuses gregos que levavam pouco a sério a hierarquia do Olimpo onde faziam intriga política por conta própria para beneficiarem os heróis ou povos de suas simpatias. Nem falar dos deuses tão mui levados a sério como os intolorantes judaico, cristão e islamita que desde há muitos séculos deixam que os seus povos cá na Terra se guerreiam e matem entre si sem ainda se terem entendido para fazer as pazes cá em baixo entre os homens. Também não vou falar dos considerados grandes homens heróis guerreiros conhecidos da história universal que se auto-intitularam como deuses augustos, césares e magnos imperadores.

Não, vou falar dos nossos deuses menores homens e mulheres portugueses mais ou menos comuns que, tal qual os meninos do povo se divertem nos jardins infantis imaginando ser bombeiros e cabeleireiras, se imaginam e auto-convenceram mesmo que são verdadeiros delegados píticos dos deuses do céu omniscientes; isto é, que participam em alguma dose mínima da omnisciência divina que lhes dá o poder de presciência sobre o futuro.

Realmente, a partir de suas interpretações pessoais de factos e acontecimentos diários, pelas suas visões individualistas acerca das falas e exposições de outrem quer sejam sábios, técnicos qualificados, governantes, políticos experientes e, sobretudo, acerca de qualquer decisão importante tomada sobre o que quer que seja estes deuses-míni-infantis hão de ter sempre uma opinião mui especial e diferente; que julgando eles participar do ser de deuses, embora em dose mini-míni irreconhecível, não podem consentir que qualquer mortal, mesmo que tenha matado a vista e a cabeça a estudar o assunto, tenha opinião mais sábia e fundamentada; como tal, do alto do seu pensar e saber julgado adquirido por via directa do toque mini-divino logo as trombetas dos anjos mediáticos comunicacionais se dispôem para anunciar a sua verdade sobre qualquer assunto acerca do qual eles ditam a versão certa, definitiva, confirmada, fechada e sacralizada com uma risada geral em comum e uníssono em jeito de grande final coral dos pequenos deuses contentes e cheios do seu estatuto acima de gente mortal; só quando, raramente, vestem roupagem mental de tons de cores algo diferentes desafinam um pouco nos pormenores da oracular verdade canónica taxativa.

Assim é porque cada um dos auto-convencidos pequenos deuses que têm assento no parque infantil de divertimentos dos media ditam oráculos não pela boca do seu deus totémico mas sim pela sua língua e boca que lhes dita uma faladura de verdade de seus próprios pensamentos, sonhos e pesadelos; a sua deles sofística argumentação e faladuras proclamadas com falsa assertividade e convicção são auto-biográficas ou, melhor, são a biografia dos seus desejos.        

E como não há pensamentos precisamente idênticos também não há desejos idênticos nem biografias coincidentes; na generalidade botam faladura ao sabor dos factos que acontecem ou aconteceram a si próprios; se lhes acontece um mal ou são mal tratados lá fora tecem cobras e lagartos do país do acontecido e elogios ditirâmbicos ao seu país mas se lhes acontece cá dentro o seu país é a maior desgraça e porcaria do mundo desde Afonso Henriques que até bateu na mãe, como pensam; Portugal é sempre, para eles, uma desgraça, uma vergonha, a choldra como desde há mais de um século alguém o apelidou; isto é, o bombo da festa que faz a alegria no jardim infantil dos meninos-deus prodígio ensinando aos sábios no templo dos vendilhões de media.

Também na generalidade todos debitam opinião escrita diária ou semanalmente mas é no jardim infantil que se requintam para a notoriedade; uns ao seu estudado estilo literariamente rebuscado e floreado opinando sobre tudo para não dizer nada e não se comprometerem ou servem-se de casos pessoais para dar recados ao mundo da sua importância; outros fazem chalaça humorística ad hominem expressando que lhes vai no fel uma vontade enorme de assassinar o carácter de alguém que não lhes bate palmas; outros arrasando tudo a eito para assim poderem acertar em alguma pequena coisa e depois, ufanos, repetir e repetir, eu avisei, eu fui o primeiro a dizer...; outros dão saltinhos na cadeira do jardim infantil quando descobrem um argumento julgado "irrefutável" e assim ficam aos saltinhos de contentes pela descoberta; outros atacam os governantes em apoio de opositores como quem anda com um escadote às costas para subir tão alto um dia quanto o frete feito; e mesmo algum que parece saber pensar e argumentar com lógica, que parece ser sério e falar por si próprio, que é mais racional e subtil na exposição das opiniões, esse mesmo não consegue sair do registo auto-biográfico dos seus interesses e desejos, como é próprio da condição do homem político, para mais, crítico apaparicado.

E se aqueles são mini-deuses a praticar travessuras nos seus jardins infantis dos media que dizer dos deuses criadores de notícias que se apresentam na pantalha doméstica frente às pessoas como um deus-mor criando o mundo em uma hora; porque, imbuídos da falsa ideia de que o que não passa no ecran não existe deduzem axiomaticamente que só existe o que eles querem mostrar; isto é, no mundo só existe o que eles querem que exista donde se auto-considerarem os grandes criadores do mundo numa hora.

A bíblia diz que Deus criou o mundo em seis dias e descansou ao sétimo; pois estes novos deuses criam e recriam o mundo todos os dias hora a hora, não sem descansar, mas sim não dando descanso aos outros; alguém que pense fora do mundo da caixa é tratado como herege, como fora da realidade criada na hora diariamente, como um distraído, lunático ou ignorante que não conhece o mundo da caixa deles virtual e falso, como inadaptados à realidade (virtual) criada por estes pretensos deuses impantes de ego criador mas não criativo; um deles, quando acaba, mais uma vez, de recrear o mundo até pisca o olho e deixa no ar um sorriso de intimidade com o seu mundo pessoal como se fora um sinal comunitário à maneira de João a baptizar os crentes no rio dos media.

Estes sim, todos eles, vivem fora do mundo real vivo, visível e invisível, sempre em mudança imperceptível e insondável; estes sim, vivem no mundo ora de suas fantasias, sonhos, medos e pesadelos ora usando do truque de  "inversão de papéis" colocando-se na posição de outrem e desse modo formar juízos sobre os seus próprios preconceitos e falsificar o outro; estes sim, dada a digitalização e instantânea globalização da informação por cada vez mais e mais sofisticadas redes sociais anunciando mudança de paradigma, vivem iludidos de sua virtual realidade; estes sim, lutam contra carneiros e moinhos por dulcineias de que é feito o seu mundo fictício em vias de desaparecimento rápido.

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