quarta-feira, março 09, 2022

GUERRA COLONIAL, a ideologia maior do que a guerra.

Depois da leitura do recente livro de Dezembro de 2021 "Buenos Aires, Tempos de Paixão" do mesmo autor e meu colega do IIL, Institudo Industrial de Lisboa, dediquei-me à leitura do livro "Guerra Colonial, a memória maior que o pensamento"  do mesmo autor com edição de 2009.

Ambos são relatos de factos - reais e datados, servindo a componente ficcional para a verdade ser mais segura e atingir maior profundidade -. Será que o facto ficcionado torna a verdade mais profunda e segura? Não será que a utilização da ficção do real serve, antes, para dar à narrativa uma versão pessoal da realidade e, quiçá, uma versão preconceituosa segundo um receituário ideológico?

Cronologicamente contíguos os factos de "Buenos Aires, Terra de Paixão" precedem os factos de "Guerra Colonial", ao contrário do que pode dar a entender a data das edições. O primeiro relata a luta determinada de um estudante pobre, filho de operário de fábrica da CUF no Barreiro e neto de operário ferroviário desde princípios dos anos sessenta do séc. XX. O segundo relata a sua luta contra a guerra colonial desde o ingresso na tropa em Mafra para o Curso de Oficiais Milicianos até à sua 2º ida para a Guerra em Moçambique como soldado raso, depois de uma primeira ida em Outubro de 1972, como Furriel despromovido do Curso de Oficiais Miliciano seguida de prisão militar e novo envio para a guerra como soldado raso despromovido de Furriel Miliciano. O relato ficcionado do livro "Guera Colonial" termina com a Revolução Militar de 25 Abril 1975 anunciada às 07H00 na Rádio, assim; - Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas!... -

Ambos os livros têm um denominador comum; o relato dos factos são causas e consequências uns dos outros e sempre ficcionados sob a perspectiva do bom comunista convicto da correta leitura política dimanada do Partido. E, também, têm em comum o mesmo narrador João que não é mais que o autor da ficcão dos factos por si vividos, no primeiro caso como estudante interventivo nas lutas académicas dos anos sessenta em Lisboa e agora como militar na guerra colonial em Moçambique.

Tal como o livro "Buenos Aires, Terra de Paixão" é um longo libelo contra as estruturas e políticas de ensino do regime salazarista, "Guerra Colonial" é a continuação desse libelo face à exploração de tipo esclavagista do colonialismo praticado pelo regime liderado por Salazar e depois por Marcelo Caetano. Todos os capítulos, sub-capítulos e episódios intercalados como fragmentos de saltos temporais e espaciais na corrente da narrativa principal, diga-se, bem inseridos, são eles também construídos sobre factos históricos de modo a acentuar a aberração político-social do colonialismo português e dar peso histórico à leitura da mensagem central que se pretende transmitir ao leitor.

A visão da guerra colonial portuguesa observada apenas sob o ponto de vista ideológico do partido leva para fundamentações dessa guerra algo contraditórias. Um dos argumentos usuais é pensar que a História dos homens começa onde se lhe queira pôr um início para conveniência da narrativa que se persegue militantemente. Assim, quando se diz no "Prólogo (Advertência)"; - Como se não existissem 400 anos de dominação, escravatura, exploração e opressão! - para denunciar a mentira propagandeada pelo salazarismo acerca da verdadeira realidade africana nas colónias. E antes não existiram outros 400 anos e outros e outros? Será que os regimes africanos anteriores a esses 400 anos não eram de dominação e escravatura face à luta pela posse da terra, mulheres e outros bens, às rivalidades e lutas entre os vários povos nativos vizinhos? Teriam os nativos africanos de antes da chegada dos portugueses noções de escravatura, exploração ou opressão no sentido e peso moral que atribuímos no estádio civilizacional de hoje? E o que vem logo a seguir, - A História não se repete mas os tiranos, os reaccionários e os defensores do neocolonialismo e do imperialismo parecem renascer das cinzas -, é uma contradição nos termos pois se a "História não se repete" porquê os reaccionários e os defensores dos neocolonialismo e do imperialismo "parecem renascer das cinzas

Foi o próprio Marx que, na abertura da sua obra "O 18 do Brumário de Louis Bonaparte", diz: - Hegel fez notar algures, que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa" (Edição 'Nosso Tempo - Textos'. Tradução M.Teresa de Sousa, 1971). Marx certeiro ao analisar a história mas, incrível é a sua premonição, sem o querer, mas profética e totalmente em oposição ao seu proposto sistema social para o futuro; no preciso momento em que ele pensava banir da história, para sempre, tal repetição de tragédia versus farsa na história dos humanos, dada a proposta do seu pensamento sistémico do socialismo rumo ao comunismo e ao fim da História ele, predizia sem o saber, a grande farsa que foi o futuro do socialismo aplicado à realidade do ser homem e suas circunstâncias e não apenas simplesmente pensando o ser humano como o produto de um meio raso sujeito a uma escolástica ideológica.

Escrito algo ao estilo do neorrealismo o fio condutor da narrativa ficcionada tem como figura principal, tal como no livro Buenos Aires..., o João que, também aqui, se confunde com o próprio autor ficcionista dos factos. Contudo, agora, já não personalizado na figura de um operário de fábrica ou proletário à jorna nos trabalhos da terra mas sim como filho desse velho proletário operário ou rural que fora estudar para a escola dos ofícios para pobres afim de se libertar da condição de vida humilhante dos pais. Agora o João se tornara Engenheiro Técnico e assentara praça como futuro Oficial Miliciano do Exército preparado para a Guerra Colonial; o estatuto do herói da narrativa mudara mas a forma neorrealista de encarar e enfrentar o serviço militar numa revolta coerente e organizada já segundo o modelo ideológico do partido é consciente e constante. Vai ser despromovido do Curso de Oficiais Milicianos para o Curso de Sargentos Milicianos e, mais tarde, preso como Furriel Miliciano e despromovido a Soldado Raso enviado de novo para o interior perigoso da guerra em Cabora Bassa aguentando ideológica e estoicamente as dolorosas injustiças, torturas e sofrimentos a que foi sujeito.

Acerca da grande questão do dever ir ou dever de não ir à guerra também logo no "Prólogo (Advertência)" a questão é colocada; segundo o partido de forma ambígua e segundo o João de forma clara e definitiva imposta pelo argumento de "uma importante nuance" decidida pelo partido acerca da guerra. Diz-se que o partido - Apelou simultaneamente à organização da resistência contra o aparelho militarista e à recusa da ida à guerra da juventude portuguesa - e, de seguida, cita-se o "Avante de Outubro de 1962 (mais de ano e meio depois de rebentar a guerra em Angola e quando já para lá tinham sido enviados milhares de soldados) no qual não se define concretamente se se devia ou não ir à guerra.

Assim, João diz, - A recusa podia revestir diversas formas, nomeadamente: fuga à tropa, recusa ao embarque ou deserção no próprio teatro de guerra -, confirmando a recusa preconizada atrás pelo partido segundo o João. Contudo a recusa é recusada face às medidas de punição severa inscritas no RDM especialmente a pena de morte para deserção em teatro de guerra. Que fazer?

O João explica, - Na determinação da sua orientação de resistência ao fascismo e ao colonialismo, sob todas as formas, os comunistas desde sempre equacionaram uma importante nuance: os seus militantes, ou de uma forma mais geral os antifascistas mais esclarecidos, deviam ir à guerra e uma vez aí desempenhar um papel difícil e arriscado de esclarecimento junto dos restantes soldados (o povo fardado!...) a quem a verdade histórica e a realidade dos factos era subtraída, deturpada e mentida -.   Depois, ao longo do decorrer do livro, João, vai descrevendo vários episódios de luta justificativos da aplicação dessa nuance pedida pelo partido aos seus militantes. E diz-nos que esse trabalho de consciencialização política dos militares do quadro tiveram um efeito importante na organização, primeiro do "Movimento dos Capitães" e depois no "Movimento das Forças Armadas" culminando, mais tarde, no derrube do regime em 25 de Abril de 1974. E conclui que tal facto capital se deu porque, - Essa influência exerceu-se muito mais pela acção significante de quem estava na guerra, do que pelo exemplo meritório dos muitos milhares que lá não foram -.  

Assim, na atual discussão acerca de quem esteve mais certo, se o combatente ou o que se exilou e fugiu à guerra, o autor dá razão ao combatente não obstante o exemplo meritório dos muitos milhares que lá não foram. E, não obstante, o autor enfatizar mais o trabalho e atuação premeditada e organizada pelo aparelho do partido junto dos militares, trabalho esse protagonizado pelo João, dado como exemplo, na realidade foram os 13 anos de permanente guerra sem solução política à vista e pior, perante a impossibilidade de vitória militar, caídos  num beco e colocados entre a espada e a parede os militares resolveram derrubar a parede.

Foi, acima de tudo e de longe, o sacrifício de milhares de mortos e feridos que regaram com seu sangue as picadas da selva africana e de pais, mães e viúvas que regaram com lágrimas os lares portugueses que, lentamente, ao longo de uma dúzia de anos mudaram, moldaram e fixaram uma nova consciência dos militares do quadro, em especial dos jovens capitães; especialmente estes que eram os mais próximos dos soldados quer no combate quer na morte. Sabe-se que a organização da revolta dos capitães militares do quadro começou por uma reivindicação corporativa-sindical, contudo, o sentimento de revolta contra a guerra estava definitivamente instalada em suas consciências pois rapidamente transitou de uma simples reivindicação sindical para uma constatação de que tal não resolveria nada acerca da questão de fundo: o prolongamento indefinido da guerra sem fim à vista e em condições cada vez mais difíceis para os militares que, ainda por cima, ficariam com o ónus da derrota.

Como digo atrás, o livro "Guerra Colonial, a memória maior que o pensamento" é um libelo contínuo bem esgalhado sobre o regime do Estado Novo salazarista. Contudo toda a narrativa se enquadra sob a perspetiva política do partido comunista português sem qualquer outra abordagem ou ponto de vista histórico-político. Assim é, simultaneamente, uma contínua apologia política do partido do autor. Até mesmo quando avança pela descrição da História de Moçambique, desde as descobertas dos navegadores portugueses que encontraram um povo - de tipo negróide, ou mais provavelmente uma mistura de vários tipos africanos miscigenados com os povos conquistadores do Norte. Mas tratava-se inequivocamente de um povo puramente africano que possuía inegavelmente a tecnologia da idade do ferro e vivia num sistema tribal-feudalista -. Com a chegada dos portugueses, estes, - lançaram-se desesperadamente à procura de ouro; quando este lhes começou a faltar começaram a procurar prata; quando esta faltou também lançaram-se em busca de qualquer coisa que lhes desse lucros rápidos, acabando por se contentar com o comércio de escravos -.  

Este episódio, à semelhança dos demais desta narrativa ficcionada, é pensada e focada para terminar em crescendo final, não no empreendimento, mau ou bom, dos navegadores mas sobretudo e apenas no português porco, desdentado, mau e carniceiro comerciante de escravos. Sabe o autor o que aconteceu aquando os conquistadores do norte forçaram e promoveram a miscigenação dos povos do sul? Mais uma vez faz-se que a História da civilização tenha início onde dá jeito para integrar idealmente a mensagem preconceituosa da ideologia formatada.

Outro caso revelador de preconceito ideológico é o episódio de "O senhor doutor", que fora apanhado  "a desertar com medo da guerra" fugindo a "salto" na fronteira de Vilar Formoso, tratado como cobarde delator do João que - numa noite contou toda a sua história desde pequenino, denunciando a grande acção de agitação unitária que tão bem tinha corrido, em Mafra, em Dezembro de 1971 -. Este cobarde delator que, mal era ameaçado, "cantava" facilmente tudo à Pide desde pequenino era, só podia ser, do MRPP.

Ao contrário o episódio de "A negra Teresa" revelando um facto igualmente degradante para a pessoa humana, a personagem porque se degrada, se rebaixa e se deixa humilhar e prostituir como ser humano ao serviço da causa do "bem" é tratada como uma heroína sem a mais pequena repreensão moral a quem a condena sujeitar-se a tão desumana condição servil. Ela leva o seu sacrifício ao ponto de ter filhos seus de um qualquer malvado militarista Furriel Miliciano de serviço, para obter informações das operações militares portuguesas que depois transmite aos seus camaradas locais guerrilheiros da Frelimo. Um camarada perguntava, - Porque se sujeitará Teresa, uma mulher tão bonita a este ultraje permanente? E só escolhe operacionais dos GEs! O anterior também era! E o próximo?... Não sabia, este camarada, que, - Desde quando a Teresa «casara» pela primeira vez, o Grupo Especial formado sobretudo por negros de etnia macua, fazendo as principais despesas da guerra naquela zona, raramente encontravam alguém da guerrilha, que todavia continuava activa! -.      

Uma ideia transcendental de Deus que promete o paraíso a todos após a morte, pode tornar-se uma irredutível convicção-fixa pelo processo de crença no desconhecido objectivado numa paradisíaca promessa, assim como uma ideologia objectivada numa promessa de um futuro de beleza e alegria contínua para todos, pode tornar-se uma ideia divinizada por via de um socialista dotado enviado de um transcendental Deus social.

Etiquetas: