terça-feira, julho 03, 2007

MARAFAÇÕES XXVII

O CONTENTE-DESCONTENTE

É corrente, é fala comum, é conversa de café, é linguagem de livrescos, é mensagem à flôr da pele, é imitação de boca cheia, é resposta de ponta da língua, é a tradição passa culpas e desculpas nacional, é já uma mentalidade portuguesa elogiar os mortos e dizer mal dos vivos. Somos como vermes subterrâneos que detestam a luz e amam restos mortais. Todos os mortos da História são despidos de sua humanidade à época para serem cobertos com a capa de heróis nacionais sem mácula. A todos os mortos conhecidos, a nossa mentalidade coitadinho, mesmo para os maiores sacanas encontra um lado bom para elogiar e esquecer o resto. A todos os mortos desejávamos que estivessem vivos e a todos os vivos desejamos que morram amanhã. Somos implacáveis com os nossos conterrâneos vivos que se elevaram acima de nós e a quem desejamos a morte porque nos matam de inveja. Somos amáveis para com os mortos porque já não incomodam e ninguém inveja o seu estatuto de morto.
Tal como todos os malandros odeiam quem trabalha, assim todos os assentados contentes odeiam quem faz pela vida no emprego, na escola, na política, na ciência, nas artes, nas letras, quem na sua ocupação se dedica a escalar a montanha e atingir o alto. E o pior de todos é o contente por dentro, que sabe de si e por si que não contém capacidade para mais, e descontente por fora que, para esconder essa incapacidade própria, se manifesta ostensivamente de forma teatral barulhenta trágico-provocatória.
Na política, o uso e abuso pelo contente-descontente desta técnica é estratégia de vida corrente, porque não poucos logram atingir lugares imerecidos com alguma esperteza e muita dissimulação e, porque o caudal da vida política que leva muito lixo à tona, desagua no enorme estuário do Estado que não deixa ver o pormenor merdoso. O contente-descontente que não alcança objectivos perseguidos leva a vida proferindo imprecações de morte face aos políticos governantes vivos e, ao mesmo tempo, implícita ou subentidamente, solicita o regresso à cadeira do poder do ditador morto caído da cadeira do lazer. Para estes, os políticos vivos são sempre uns bandidos que roubam, se enchem e vivem à custa do seu dinheiro e do seu trabalho, ao contrário dos políticos mortos que, embora ocupando os mesmos palácios e mordomias do Estado, viviam do seu honesto trabalho. Há ainda o contente-descontente incontido, que quer ascender rápidamente e a qualquer preço ao lugar dos outros ou entre os outros, os tais contra quem profere imprecações de morte, e que envereda pela provocação na tentativa de por esse meio saltar para a actualidade falada e escrita, e de seguida, com sorte e habilidade, saltar para o almejado poleiro.
Contudo o contente-descontente ufana-se em declarar em todas as mesas: "...eu não sujo as mãos na merda da política", e proclama-se independente mas sempre pronto a apoiar e participar em movimentos cívico-políticos de outros contentes-descontentes mais notáveis. Ele só apoia causas nobres fora do sistema, é o puro contra o sistema corrupto, não vota na política possível nem nos políticos existentes, bate-se pela sua própria política na roda de amigos, é justiceiro de má língua por conta própria, não vai a eleições nem faz campanha poque não quer enganar ninguém, não quer fazer promessas que depois os outros não o deixem cumprir. No fundo o contente-descontente paira por sobre o povo intelectualmente, presume que o povo se deixa enganar e devia apelar a si para o salvar e, jamais obrigá-lo a suportar o mal cheiroso povo das feiras, das praças, das ruas dos bairros sociais, dos arraiais populares, dos comícios, dos lares de idosos e refeitórios de mendigos, etc. Com tal mentalidade, se um dia obtivesse o poder relegaria imediatamente esse povo ignorante e suas atrazadas tradições, para cobaia das utopias que lhe povoam a cabeça a partir dos sistemas político-filosóficos da moda.
Os contentes-descontentes surgem à frente de comissões ou associações de amigos de protestos, andam pelo ensino, abundam no jornalismo, mas basta uma olhadela alargada pela blogosfera para constatarmos que esta se transformou no verdadeiro mato onde se alberga toda a bicharada da estirpe contente-descontente.

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