quinta-feira, novembro 29, 2007

CONTRATADOS DE ANGOLA


CÂNTICO DOS CONTRATADOS
A roça Rodrigues & Irmão ficava a 80 kms do Terreiro, Posto de Bolongongo, próximo da nascente do rio Dange numa zona de pequenos fazendeiros de café feitos a braço próprio. Os próprios fazendeiros viviam no centro da zanzala de contratados Bailundos numa casa tipo cubata melhorada de paredes caiadas. Era uma zona bastante inóspita onde a água tinha de ser filtrada e tratada a "alozone", mesmo assim do pelotão destacado, ao fim dos quinze dias previstos, metade do pessoal já tinha contraído paludismo.

Foi neste local que passei o Natal de 1962 e pude assistir à festa que os cerca de cem contratados bailundos da roça, homens mulheres e crianças, fizeram para comemorar o fim do contrato e o regresso às suas aldeias natais no Sul. Na cantina da roça fazia-se a multiplicação do vinho do barril com água, mesmo assim os contratados comeram e beberam da mistura o suficiente para aquecer alegrias corpos e cânticos.

Todos, homens, mulheres e crianças sairam para o terreiro, formaram grupo, e iniciaram um cântico-de-graças pelo regresso à aldeia e casa nativa, feito de vozes, tambores rudimentares, latas, tábuas, pedras, palmas e assobios. Entusiasmado, peguei no gravador mono "okicorder" que tinha comprado em Luanda um ano antes, e acompanhando o desfile cantante à volta da sanzala fui gravando a melodia de contentamento dos contratados.

O Adão, herdeiro desse gravador, usou-o para outras gravações suas quando ele próprio foi para a tropa, tinha conhecimento desta gravação. Agora, passados 45 anos, descobriu a respectiva fita e conseguiu recuperar todos os registos incuindo este feito no Natal de 62 na roça Rodrigues & Irmão em Angola.

É exactamente esse registo musical original, captado pelo gravador mono marca "okicorder", que se reproduz aqui inserido no video anexo, com imagens de Angola da altura.






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2 Comments:

Blogger João Brito de Sousa said...

PORTO, 2007.11.29

MEU CARO ADOLFO,

Aí vai poesia.


Carta De Um Contratado



Eu queria escrever-te uma carta

amor,

uma carta que dissesse

deste anseio

de te ver

deste receio

de te perder

deste mais bem querer que sinto

deste mal indefinido que me persegue

desta saudade a que vivo todo entregue...



Eu queria escrever-te uma carta

amor,

uma carta de confidências íntimas,

uma carta de lembranças de ti,

de ti

dos teus lábios vermelhos como tacula

dos teus cabelos negros como dilôa

dos teus olhos doces como maboque

do teu andar de onça

e dos teus carinhos

que maiores não encontrei por aí...



Eu queria escrever-te uma carta

amor,

que recordasse nossos tempos na capopa

nossas noites perdidas no capim

que recordasse a sombra que nos caía dos jambos

o luar que se coava das palmeiras sem fim

que recordasse a loucura

da nossa paixão

e a amargura da nossa separação...



Eu queria escrever-te uma carta

amor,

que a não lesses sem suspirar

que a escoindesses de papai Bombo

que a sonegasses a mamãe Kieza

que a relesses sem a frieza

do esquecimento

uma carta que em todo o Kilombo

outra a ela não tivesse merecimento...



Eu queria escrever-te uma carta

amor,

uma carta que ta levasse o vento que passa

uma carta que os cajús e cafeeiros

que as hienas e palancas

que os jacarés e bagres

pudessem entender

para que o vento a perdesse no caminho

os bichos e plantas

compadecidos de nosso pungente sofrer

de canto em canto

de lamento em lamento

de farfalhar em farfalhar

te levassem puras e quentes

as palavras ardentes

as palavras magoadas da minha carta

que eu queria escrever-te amor....



Eu queria escrever-te uma carta...



Mas ah meu amor, eu não sei compreender

por que é, por que é, por que é, meu bem

que tu não sabes ler

e eu - Oh! Desespero! - não sei escrever também.

11:23 da tarde  
Blogger João Brito de Sousa said...

Porto, 2007.11.29


Mais uma vez, MEU CARO ADOLFO.


Utilizei a tua roça do RODRIGUES & IRMÃO que penso ser de pessoal dos BRACIAIS para utilizar no meu barcosaoalto.

Em troca aí vai mais um poema de ANTÓNIO jACINTO e um abraço do

João Brito Sousa


POEMA DA ALIENAÇÃO
Antonio Jacinto
Não é este ainda o meu poema
o poema da minha alma e do meu sangue
não
Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema o grande poema que sinto já circular em mim
O meu poema anda por aí vadio
no mato ou na cidade
na voz do vento
no marulhar do mar
no Gesto e no Ser
O meu poema anda por aí fora
envolto em panos garridos
vendendo-se
vendendo
“ma limonje ma limonjééé”
O meu poema corre nas ruas
com um quibalo podre à cabeça
oferecendo-se
oferecendo
“carapau sardinha motona
jí ferrera ji ferrerééé”
O meu poema calcorreia ruas
“olha a probíncia” “diááário”
e nenhum jornal traz ainda
o meu poema
O meu poema entra nos cafés
“amanhã anda a roda amanhã anda a roda”
e a roda do meu poema
gira que gira
volta que volta
nunca muda
“amanhã anda a roda
amanhã anda a roda”
O meu poema vem do Musseque
ao Sábado traz a roupa
à Segunda leva a roupa
ao Sábado entrega a roupa e entrega-se
à Segunda entrega-se e leva a roupa
O meu poema está na aflição
da filha da lavadeira
esquiva
no quarto fechado
do patrão nuinho a passear
a fazer apetite a querer violar
O meu poema é quitata
no Musseque à porta caída duma cubata
“remexe remexe
paga dinheiro
vem dormir comigo”
O meu poema joga a bola despreocupado
no grupo onde todo o mundo é criado
e grita
“obeçaite golo golo”
O meu poema é contratado
anda nos cafezais a trabalhar
o contrato é um fardo
que custa a carregar
“managambééé”
O meu poema anda descalço na rua
O meu poema carrega sacos no porto
enche porões
esvazia porões
e arranja força cantando
“tué tué trr
arrimbuim puim puim”
O meu poema vai nas cordas
encontrou cipaio
tinha imposto, o patrão
esqueceu assinar o cartão
vai na estrada
cabelo cortado
“cabeça rapada
galinha assada
ó Zé”
picareta que pesa
chicote que canta
O meu poema anda na praça
trabalha na cozinha
vai à oficina
enche a taberna e a cadeia
é pobre roto e sujo
vive na noite da ignorância
O meu poema nada sabe de si
nem sabe pedir
O meu poema foi feito para se dar
para se entregar
sem nada exigir
Mas o meu poema não é fatalista
o meu poema é um poema que já quer
e já sabe
o meu poema sou eu-branco
montado em mim – preto
a cavalgar pela vida.

Recolha de
João Brito Sousa

12:43 da manhã  

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