quinta-feira, abril 10, 2008

AS LEIS DE ANTÍGONA




Aproveitei uma obrigação de passar uns dias em Lisboa para ir ver uma das clássicas e imortais peças da tragédia grega, a Antígona, em última representação na "Barraca". Fui por escolha através dos anúncios dos jornais e não me passou pela cabeça que num domingo de sol às 16,00H fosse preciso marcação antecipada para garantir lugar. Algumas vezes, em situações identicas, tive de assistir a peças com meia dúzia de espectadores. Neste caso, tive de esperar pelas desistências marcadas para obter o tão desejado bilhete de ingresso. Fiquei contente por assistir ao espectáculo com lotação esgotada e pensei se Sófocles alguma vez teria imaginado que 2500 anos depois, a sua peça ainda suscitaria a corrida para o teatro de tanta gente entusiasmada em perceber os valores mais altos que norteiam a personagem Antígona.
A crítica habitual faz de Antígona o símbolo da humana e contraditória luta entre dever e consciência, cedência ou revolta, sujeição à lei escrita e ordem imposta pelos homens ou obediência às leis que nunca foram escritas mas são imutáveis. Em suma, a luta entre o respeito pela lei imposta, escrita, temporal, ou pela lei natural, eterna. Mais modernamente, a luta insanável entre a lei, a ética e estética da ordem apolínea contra as leis mais altas (divinas) do sangue, da raça, do amor (Afrodite), imanentes à natureza ctónica do Homen e que são da ordem (desordem) dionisíaca.
Sófocles, perante a força de lei tirana do rei ou a lei da força da Natureza, coloca a maior e mais maravilhosa criação que conhece: -Muitas são as maravilhas do mundo, mas o Homem supera-as a todas. Ele conhece a palavra , o pensamento alado, os costumes urbanos, e sabe defender-se dos inóspitos frios, sob o sereno céu, e das fustigantes chuvas. Sagaz e sem medo enfrenta o futuro. Só não pode encontrar salvação contra a morte, embora saiba curar males sem remédio. Embora invente sábios e úteis expedientes para além de toda a esperança, caminha necessáriamente para o mal ou para o bem -. Sofocles, à boa maneira clássica grega é imparcial, não toma partido, deixa isso aos desígnios e julgamento dos imortais, deixa os protagonistas levar a sua obstinação até ao fim, só o desenrolar dos acontecimentos trágicos vão indicar-nos qual a lei mais forte. Mesmo face à trágica profecia de Tirésias, Cleonte já perturbado ainda diz: - ceder não é menos terrível que resistir -.
Vivendo Sófocles em pleno apogeu da democracia Ateniense, o seu pensamento não podia estar desligado do mundo que o rodeava. Ele foi, dos três grandes trágicos, o mais didáctico a enaltecer e transmitir os valores superiores dessa democracia face ao poder absoluto de reis e tiranos. Também esta peça começa por um Cleonte, impante da victória, a emitir e impôr de moto-próprio um édito ao povo, que continha um juizo pessoal de vingança. Antígona rebela-se contra tal édito e sabe que o povo apoia a sua conducta mas cala-se por medo, e diz: -A tirania é feliz por muitas razões e, entre elas, porque pode fazer e dizer o que mais lhe agrada -. Na fala com Hémon, seu filho, noivo e defensor de Antígona (também por razão de leis mais altas e não-escritas, leis de Afrodite), quando este diz ao pai, Cleonte, que o povo não tem a sua opinião, este responde irado: - Mas terei eu de receber ordens do povo? Será que terei de governar como apraz aos outros?-. Hémon responde: -Não existe cidade onde um homem governe sózinho-. E Creonte responde automáticamente: - Existe, sim: a nossa cidade -.
Estes diálogos que pôem em causa o poder absoluto do rei que se torna tirânico só se pode entender como contraponto à democracia ateniense onde os cidadãos participavam viva e activamente em toda a vida da polis. Posteriormente, em "Édipo em Colono", Sófocles fará com uma beleza poética admirável a defesa da superioridade democrática de Atenas sobre o reino de Tebas perante o mesmo Cleonte. Mas Sófocles, através da fala do coro, já avisara Cleonte que o seu absolutismo sobre a cidade estava sob a alçada do juizo que os criadores das leis nunca escritas nem promulgadas, mas acima das dos homens, fizessem do seu comportamento para impôr os seus desígnios irreversíveis: - Desde as mais remotas eras, uma lei eterna vigora: a cada excesso do Homem, logo sucede rapidamente a desventura-.

Quanto à encenação e trabalho dos actores achei tudo muito pequeno e fraco tendo em conta a grandeza e força trágica da peça. A rede de arame farpado que separava o público do palco parecia indicar este como um lugar inacessível aos mortais, e que do outro lado, no palco da acção, movimentavam-se, interpelavam-se e questionavam-se os deuses e não apenas homens, por mais ilustres que esses homens fossem. Ora Sófocles é bem claro que, inacessíveis aos homens são os desígnios dos deuses o resto é tudo uma luta entre mortais de viagem para o Hades.
Gostei da abertura da peça com uma encenação de um pré-prólogo mostrando a cidade, na vista das suas sete portas, sobrevoadas por nuvens negras e ventos uivantes anunciando presságios de grande tragédia. Gostei igualmente do fecho da peça com os dançarinos negros cabriolando entre os cadáveres trágicos indiciando a dança das menades celebrando um rito final dionisíaco.

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