NOTÍCIAS DOS GORJÕES III
LEONADRO
O Leonardo foi a figura que mais pisou o chão e as calçadas do "Alto" nos Gorjões. Mesmo quando não se passava nada nem havia ninguém no lugar, ele lá estava dando vida ao instante. Com a música do seu magnífico assobio de imitar pássaros, sentando-se nas sombras calcetadas das casas conforme o correr do sol, ele sozinho dava o colorido ao "Alto" até aparecer alguém para uma cavaqueira de matar o tempo. Era tão habitual a sua presença que, nas raras vezes que faltava ou se atrazava, era motivo de preocupação dos habitantes e pessoal das "vendas" locais.
Uma vez, num desses raros atrazos, eu perguntei-lhe:
A: -Então Leonardo só agora?
L: -Fui ganhar o dia, tu não comes todos os dias, eu também e ninguém mo dá.
A: -Foste para a pedreira fazer calçada?
L: -Fui ainda de noite armar as ratoeiras, ao nascer do sol apanhei uma barrigada de figos "arréguados" da brandura da noite, e depois fui p'rá pedreira até o sol deixar.
A: -O sol não te deixa ficar na pedreira?
L: -Vai p'ra lá tu e logo vêz, nem 15 minutos aguentas no buraco da pedreira com o sol a dar-lhe em cheio. Não trabalho p'ra me matar a "arranjar", trabalho para comer e manter-me vivo. E tenho de ir dar "revista" às ratoeiras.
A: -Depois da "revista" voltas à pedreira?
L: -Não me vêz aqui, venho comprar o peixe, depois vou p'ra casa arranjá-lo e ainda dou a "2ª revista" às ratoeiras e só depois é que vou p'ra casa assar o peixe, comer e arranjar os passarinhos.
A: -Depois vens até ao "Alto" descansar e fazer tempo até fazer sombra na pedreira?
L: -A partir do meio da tarde vou fazer umas pedras de calçada até ao sol posto, já bate sombra e e já se aguenta o calor.
A: -E onde é a pedreira?
L: -É onde calha, agora é logo ali no cerro do Xico-à-Menina, pedi ao dono do mato para tirar a pedra e ele disse que sim. Já lá tenho um buraco enorme e uma pilha de pedra arrrancada. Já foi na Cruz de Pau, no Corgo, no Mato da Mina, é onde me deixam.
A: -Fazes tudo sozinho? Como é que arrancas a pedra?
L: -Com o picareto, a pá, a alavanca e os guilhos. E os braços e as mãos, olha as minhas mãos, tem gretas pretas que parecem regos de arado. E a marreta e o martelo para partir a pedra e "quadrala" para calçada.
A: -Isso dá p'ra sopa , nunca consegues "ajuntar" um pé de meia p'ra velhice.
L: -Se não tiver nada, quando a velhice chegar morro mais depressa, se já não me governo sozinho também já não estou cá a fazer nada, não faço falta a ninguém.
A: -Os moços do teu tempo emigraram e compraram automóvel, fizeram casas novas, compraram terras e andares, estão bem e tu é sempre o mesmo pobre arrastar de vida. Não tens inveja?
L: - Olha p'ra eles, é dores na coluna, nas pernas, hérnias, ciáticas, sofrem de mil males. Andaram a passar mal e a matar-se na ganância para "ajuntar", agora gastam o que ganharam no médico e não se livram dos males. E o que sobra, logo vejo se levam p'ró céu. A mim podem dar-me uma herdade no Alentejo que eu não quero.
A: -Como?, se te dessem uma herdade grande e rica não querias?
L: -Nem pensar. Tinha de contratar homens, tratar de papéis, pagar décima, impostos, ao pessoal, não fazia mais nada senão pensar na herdade, trabalhar e morrer à custa da herdade e depois a herdade ficava p'ra quém? Não, não tenho vida p'ra isso.
Realmente não tinha vida para além daquela de que gostava e sempre levou sem invejar nada nem ninguém. Nunca foi senhor nem escravo de ninguém, nem de bens materiais ou inveja deles. Teve como único bem pessoal o seu próprio corpo e viveu para vesti-lo, alimentá-lo e tratá-lo apenas o necessário à sua manutenção. Tinha um sentido primitivo e pródigo da vida, era como uma árvore que lhe basta a terra para dar flôr e frutos aos outros.
E foi assim até ao fim, adoeceu gravemente e recusou ir ao médico. Morreu depressa como queria. Hoje, dia primeiro de Abril mas é verdade, eu vi, foi a enterrar. Hoje o buraco da pedreira abateu-se e soterrou-o na nossa memória.
Uma vez, num desses raros atrazos, eu perguntei-lhe:
A: -Então Leonardo só agora?
L: -Fui ganhar o dia, tu não comes todos os dias, eu também e ninguém mo dá.
A: -Foste para a pedreira fazer calçada?
L: -Fui ainda de noite armar as ratoeiras, ao nascer do sol apanhei uma barrigada de figos "arréguados" da brandura da noite, e depois fui p'rá pedreira até o sol deixar.
A: -O sol não te deixa ficar na pedreira?
L: -Vai p'ra lá tu e logo vêz, nem 15 minutos aguentas no buraco da pedreira com o sol a dar-lhe em cheio. Não trabalho p'ra me matar a "arranjar", trabalho para comer e manter-me vivo. E tenho de ir dar "revista" às ratoeiras.
A: -Depois da "revista" voltas à pedreira?
L: -Não me vêz aqui, venho comprar o peixe, depois vou p'ra casa arranjá-lo e ainda dou a "2ª revista" às ratoeiras e só depois é que vou p'ra casa assar o peixe, comer e arranjar os passarinhos.
A: -Depois vens até ao "Alto" descansar e fazer tempo até fazer sombra na pedreira?
L: -A partir do meio da tarde vou fazer umas pedras de calçada até ao sol posto, já bate sombra e e já se aguenta o calor.
A: -E onde é a pedreira?
L: -É onde calha, agora é logo ali no cerro do Xico-à-Menina, pedi ao dono do mato para tirar a pedra e ele disse que sim. Já lá tenho um buraco enorme e uma pilha de pedra arrrancada. Já foi na Cruz de Pau, no Corgo, no Mato da Mina, é onde me deixam.
A: -Fazes tudo sozinho? Como é que arrancas a pedra?
L: -Com o picareto, a pá, a alavanca e os guilhos. E os braços e as mãos, olha as minhas mãos, tem gretas pretas que parecem regos de arado. E a marreta e o martelo para partir a pedra e "quadrala" para calçada.
A: -Isso dá p'ra sopa , nunca consegues "ajuntar" um pé de meia p'ra velhice.
L: -Se não tiver nada, quando a velhice chegar morro mais depressa, se já não me governo sozinho também já não estou cá a fazer nada, não faço falta a ninguém.
A: -Os moços do teu tempo emigraram e compraram automóvel, fizeram casas novas, compraram terras e andares, estão bem e tu é sempre o mesmo pobre arrastar de vida. Não tens inveja?
L: - Olha p'ra eles, é dores na coluna, nas pernas, hérnias, ciáticas, sofrem de mil males. Andaram a passar mal e a matar-se na ganância para "ajuntar", agora gastam o que ganharam no médico e não se livram dos males. E o que sobra, logo vejo se levam p'ró céu. A mim podem dar-me uma herdade no Alentejo que eu não quero.
A: -Como?, se te dessem uma herdade grande e rica não querias?
L: -Nem pensar. Tinha de contratar homens, tratar de papéis, pagar décima, impostos, ao pessoal, não fazia mais nada senão pensar na herdade, trabalhar e morrer à custa da herdade e depois a herdade ficava p'ra quém? Não, não tenho vida p'ra isso.
Realmente não tinha vida para além daquela de que gostava e sempre levou sem invejar nada nem ninguém. Nunca foi senhor nem escravo de ninguém, nem de bens materiais ou inveja deles. Teve como único bem pessoal o seu próprio corpo e viveu para vesti-lo, alimentá-lo e tratá-lo apenas o necessário à sua manutenção. Tinha um sentido primitivo e pródigo da vida, era como uma árvore que lhe basta a terra para dar flôr e frutos aos outros.
E foi assim até ao fim, adoeceu gravemente e recusou ir ao médico. Morreu depressa como queria. Hoje, dia primeiro de Abril mas é verdade, eu vi, foi a enterrar. Hoje o buraco da pedreira abateu-se e soterrou-o na nossa memória.
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