sexta-feira, maio 30, 2008

PAIS POR MEDIDA


ESMERALDA FILHA DE, NÃO DE, OU DE, OU DE.

Na antiguidade clássica greco-romana todos os homens reis ou guerreios, referidos na literatura dessas épocas tinham um pai bem defenido, cujos nomes conhecemos hoje tão bem como os próprios filhos heróis. Igualmente os homens pensadores autores notáveis da epopeia, da filosofia, da tragédia, da história, da política, que constam na sua fascinante obra literária, tiveram pais únicos orgulho destes filhos que faziam questão de honra ligar sempre o seu nome ao do seu progenitor. Desta forma o valoroso heroísmo guerreiro ou de pensamento era também uma transmissão de natureza e carácter pelo sangue, uma herança familiar de pai a filho e portanto também pertença de ambos, identificada e comungada pela inequivoca ligação venerável dos dois nomes.
Assim na Ilíada, considerado o primeiro livro da literatura europeia, Homero começa: "Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida(filho de Peleu)". Depois, e referindo apenas os principais heróis do relato troiano, diz: "Quanto a homens, o melhor era Ájax, filho de Télamon", e; "Dos troianos era comandante o grande Heitor, de elmo faiscante, filho de Príamo", e; "Dos Dardâneos era comandante o valente filho de Anquises, Eneias..."
Tucídedes, filho de Oloro e Hegesípida, fundador da História por métodos racionais, no seu relato sobre a guerra do Peloponeso, refere-se assim aos notáveis: "Acercou-se também Péricles, filho de Xantipo", e: "O rei dos trácios, Sitalces, filho de Teres o tal que tomou por mulher a ateniense Procne, filha de Pandion".

Actualmente, dada a dificuldade que se tornou saber quem é o pai face à revolução sexual em curso, foi preciso inventar o teste de ADN para garantia de paternidade. Mas os portugueses, altamente expeditos e inventivos na arte de baralhar a natureza das coisas com artifícios de conceitos manhosos, conseguiram alterar a relação da descendência genética de pais para filhos. Assim, inventaram os pais adoptivos, os pais afectivos, os pais psicológicos, os pais de casa, os pais de fim-de-semana, os pais do dia, os pais do coração, os pais do amor, os pais da educação, os pais da creche, os pais do orfanato, os pais religiosos, os pais do ensino, da dança, da música, etc.

Em Faro havia, e creio que ainda há, uma instituição que acolhia os rapazes orfãos ou pobres. Eram muito conhecidos porque usavam uma farda de botas grossas, calças e blusão de cotim cinzento de pintas pretas que lhes ferrava a marca de "da Casa dos Rapazes". Ninguém sabia, ninguém lhes perguntava e alguns já não tinham e outros não saberiam quem eram os pais, por isso eram tão só os moços "da Casa dos Rapazes", sem mais. Eram muito estimados na cidade e alguns estudavam na Escola Comercial e Industrial e fizeram-se homens elevados e dignos. A maior parte, certamente, nunca se libertou do ferrete social e perdeu-se por ofícios menores.

Assim, dado que hoje em dia, os filhos que segundo a classificação portuguesa, vão deixando de ter ligação paternal pelo sangue, passarão a ser designados "filhos da afinidade" afectiva, psicológica, religiosa, etc. Claro, com filhos desta descendência ocasional, feita por medida, dificilmente poderão ser heróis conforme à concepção grega, mas provavelmente tenderão a perder-se por empregos menores ou ser heróis de jogos de mãos ou de pés. Em desespero financeiro serão heróis de livros comerciais que contam a novela das peripécias das suas várias paternidades.

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