UMA HISTÓRIA GORJONENSE III
"SERVIR" NAS HORTAS
Tinha ainda oito anos quando o pai, fugido de França onde tinha outra mulher e filhos, voltou a casa e logo começou a bater nos filhos "moços". O Virgílio, que não tinha conhecido o pai, não gostou do estranho que mal aparecido começara a distribuir "lenha" sobre ele e os irmãos. Não suportava tal tratamento e resolveu tratar da vida por conta própria.
Pôs uma saca às costas com pedaços de pão seco e umas roupas remendadas e meteu-se a pé, a caminho das "Hortas de Faro", onde ouvira falar de "moços" como os da Tia Iria Cavalinha e os Borralho Saltão, que por lá andavam e histórias de outros que se fizeram homens falados pelo seu valor no duro trabalho nas terras de regadio. Nesse tempo haviam muitos vendedores de peixe em bicicleta a pedal, aqui dos Gorjões, chamados os "arreeiros" que iam carregar a Olhão, Quarteita e muitas vezes até em Portimão. Um deles, vendo-o na estrada sózinho, indagou-o e sabendo da sua intenção de "servir" nas hortas, recomendou-lhe uma horta no Rio Seco que precisava de um "moço" para tratar do gado e explicou-lhe o caminho para lá.
Encarregaram-no de dar comida ao gado e tratar das cabanas, vinte quatro horas por dia, a troco de comida, dormida e roupa lavada e remendada. Poucos dias depois passou o seu nono aniversário a tratar manjedouras e cabanas limpando o estrume e fazendo a cama dos animais com palha nova. Era bem tratado pelos donos da horta, as "jantaradas" eram fartas, tinham tanta carne e chouriço como ossos, e dormia numa casa ao lado das cabanas onde não chovia e era quentinha com a ajuda dos animais. Também não faltava a tarimba de palha e mantas de feira onde dormia e descansava nas horas vagas. Rebentara a Guerra e ele ouvia as pessoas falar baixinho sem perceber porquê, o que lhe fazia confusão e metia medo. Contudo, no sossego da sua tarimba, deu em pensar que nunca tinha dinheiro seu para comprar uma guloseira que espreitava na "venda" próxima, onde às vezes o mandavam fazer os "avios" da casa. Andava nesta matutação há meses quando veio para a horta um filho dos donos, moço mais velho e já taludo, que além de o gozar maldosamente começou a bater-lhe a doer por tudo e por nada. Voltou a pensar no pai a quem não consentiu que lhe batesse, e era pai, e agora um aldiaga desconhecido batia-lhe outra vez sem razão.
Ainda não haviam passados dois anos, voltou a falar com o Tio Zé Cuco, o tal arreeiro que já o ajudara antes, contou-lhe que andava descontente e queria mudar de casa de servir. Foi-lhe indicado uma horta de Mar e Guerra, onde uma dona de horta, sua cliente, procurava um moço de servir. Despediu-se dos patrões do Rio Seco, com desgosto destes, e abalou saca às costas, pela "Caldeira do Neto", à procura da tal horta em Mar e Guerra. Mais experiente, disse que donde vinha ganhava, além do habitual, cem escudos por mês e pediu cento e cinquenta para ficar. Ficou a ajudar na lavoura, nas plantações hortículas e sobretudo na rega do milho e continuava a tratar dos animais e cabanas. A senhora dona da horta gostava do seu trabalho e tratava-o bem e ele fazia tudo para que gostassem dele, trabalhando sempre mais e melhor. Ao fim de dois anos passaram a dar-lhe duzentos escudos mensais e ainda podia criar pessoalmente dois borregos dos quais um era para ele. Passados outros dois anos, com catorze anos sentia-se um homem ou, pelo menos fazia o trabalho dum homem, e contudo continuava nas mesmas condições. Entretanto, valha-lhe isso, tinha-lhe passado ao lado, como ecos em surdina, o problema da Guerra, do "racionamento" e da fome que houvera por todo o país, e na casa dos pais os irmãos sentiram.
Na idade da irreverência, um dia depois de receber, sem dizer nada, pegou de novo na saca e no seu borrego às costas e fez-se à estrada à procura de nova horta onde servir. Pelo caminho foi acusado de ter roubado o borrego e refugiou-se numa casa em Mata Lobos. Contou a sua vida dura tão aflito e fielmente à gente boa daquela casa que os próprios lhe deram trabalho de servir na sua horta. Aqui permaneceu, sempre como moço de servir e fazendo todo o tipo de trabalho com animais, varas, lavrar, plantar ou regar, mais cerca de quatro anos quando soube da morte do pai.
Em Mata Lobos contactava com os "arreeiros" que lhe davam notícias dos Gorjões acerca da família e especialmente da mâe, a Tia Furgena, e dos irmãos de quem começara a ter saudades. Também tinha saudades dos matos e caminhos de pedra onde brincara e atravessara quando andou dois anos na escola oficial. Voltou a pegar na velha saca, no borrego e nos magros haveres que possuia, e regressou à casa familiar recebido com alegria pela Mãe e irmãos. Estava um homem forte e capaz de experiência feito. Arranjou trabalho, de sol a sol, a servir de moço para todo o trabalho duro, na "Casa Pinta" dos Agostos. Tão bem serviu esforçada e cordialmente a contento, que lá ficou trabalhando durante dezoito anos ininterruptos.
Nos anos sessenta abalou, a "salto" e de saca outra vez às costas, para França. Sem perceber uma palavra de francês, sem visto de trabalho mem especialização no "bâtiment", sujeitou-se ao trabalho de pau e pica nas valas, buracos, túneis, caneiros e outros piores durante cerca de seis anos, até arranjar trabalho legalizado na refinaria de Lyon, como servente, onde serviu mais dezoito anos ininterruptos, sem arrependimentos ou desgostos de alma.
A sua escola não foi de aprender de carteira e caneta servido por professor mas sim de auto-didacta a servir os donos da terra de enxada e forquilha. Com a mulher de mal incurável, voltou ao sítio e vive cá, viuvo, há dezoito anos, da suada mas seca reforma francesa, na casa com meio hectar de terra que comprou com as poupanças de emigrante, por entre toda a espécie de animais domésticos e os inevitáveis dois borregos que cria cuidadosa e carinhosamente todos os anos.
Pôs uma saca às costas com pedaços de pão seco e umas roupas remendadas e meteu-se a pé, a caminho das "Hortas de Faro", onde ouvira falar de "moços" como os da Tia Iria Cavalinha e os Borralho Saltão, que por lá andavam e histórias de outros que se fizeram homens falados pelo seu valor no duro trabalho nas terras de regadio. Nesse tempo haviam muitos vendedores de peixe em bicicleta a pedal, aqui dos Gorjões, chamados os "arreeiros" que iam carregar a Olhão, Quarteita e muitas vezes até em Portimão. Um deles, vendo-o na estrada sózinho, indagou-o e sabendo da sua intenção de "servir" nas hortas, recomendou-lhe uma horta no Rio Seco que precisava de um "moço" para tratar do gado e explicou-lhe o caminho para lá.
Encarregaram-no de dar comida ao gado e tratar das cabanas, vinte quatro horas por dia, a troco de comida, dormida e roupa lavada e remendada. Poucos dias depois passou o seu nono aniversário a tratar manjedouras e cabanas limpando o estrume e fazendo a cama dos animais com palha nova. Era bem tratado pelos donos da horta, as "jantaradas" eram fartas, tinham tanta carne e chouriço como ossos, e dormia numa casa ao lado das cabanas onde não chovia e era quentinha com a ajuda dos animais. Também não faltava a tarimba de palha e mantas de feira onde dormia e descansava nas horas vagas. Rebentara a Guerra e ele ouvia as pessoas falar baixinho sem perceber porquê, o que lhe fazia confusão e metia medo. Contudo, no sossego da sua tarimba, deu em pensar que nunca tinha dinheiro seu para comprar uma guloseira que espreitava na "venda" próxima, onde às vezes o mandavam fazer os "avios" da casa. Andava nesta matutação há meses quando veio para a horta um filho dos donos, moço mais velho e já taludo, que além de o gozar maldosamente começou a bater-lhe a doer por tudo e por nada. Voltou a pensar no pai a quem não consentiu que lhe batesse, e era pai, e agora um aldiaga desconhecido batia-lhe outra vez sem razão.
Ainda não haviam passados dois anos, voltou a falar com o Tio Zé Cuco, o tal arreeiro que já o ajudara antes, contou-lhe que andava descontente e queria mudar de casa de servir. Foi-lhe indicado uma horta de Mar e Guerra, onde uma dona de horta, sua cliente, procurava um moço de servir. Despediu-se dos patrões do Rio Seco, com desgosto destes, e abalou saca às costas, pela "Caldeira do Neto", à procura da tal horta em Mar e Guerra. Mais experiente, disse que donde vinha ganhava, além do habitual, cem escudos por mês e pediu cento e cinquenta para ficar. Ficou a ajudar na lavoura, nas plantações hortículas e sobretudo na rega do milho e continuava a tratar dos animais e cabanas. A senhora dona da horta gostava do seu trabalho e tratava-o bem e ele fazia tudo para que gostassem dele, trabalhando sempre mais e melhor. Ao fim de dois anos passaram a dar-lhe duzentos escudos mensais e ainda podia criar pessoalmente dois borregos dos quais um era para ele. Passados outros dois anos, com catorze anos sentia-se um homem ou, pelo menos fazia o trabalho dum homem, e contudo continuava nas mesmas condições. Entretanto, valha-lhe isso, tinha-lhe passado ao lado, como ecos em surdina, o problema da Guerra, do "racionamento" e da fome que houvera por todo o país, e na casa dos pais os irmãos sentiram.
Na idade da irreverência, um dia depois de receber, sem dizer nada, pegou de novo na saca e no seu borrego às costas e fez-se à estrada à procura de nova horta onde servir. Pelo caminho foi acusado de ter roubado o borrego e refugiou-se numa casa em Mata Lobos. Contou a sua vida dura tão aflito e fielmente à gente boa daquela casa que os próprios lhe deram trabalho de servir na sua horta. Aqui permaneceu, sempre como moço de servir e fazendo todo o tipo de trabalho com animais, varas, lavrar, plantar ou regar, mais cerca de quatro anos quando soube da morte do pai.
Em Mata Lobos contactava com os "arreeiros" que lhe davam notícias dos Gorjões acerca da família e especialmente da mâe, a Tia Furgena, e dos irmãos de quem começara a ter saudades. Também tinha saudades dos matos e caminhos de pedra onde brincara e atravessara quando andou dois anos na escola oficial. Voltou a pegar na velha saca, no borrego e nos magros haveres que possuia, e regressou à casa familiar recebido com alegria pela Mãe e irmãos. Estava um homem forte e capaz de experiência feito. Arranjou trabalho, de sol a sol, a servir de moço para todo o trabalho duro, na "Casa Pinta" dos Agostos. Tão bem serviu esforçada e cordialmente a contento, que lá ficou trabalhando durante dezoito anos ininterruptos.
Nos anos sessenta abalou, a "salto" e de saca outra vez às costas, para França. Sem perceber uma palavra de francês, sem visto de trabalho mem especialização no "bâtiment", sujeitou-se ao trabalho de pau e pica nas valas, buracos, túneis, caneiros e outros piores durante cerca de seis anos, até arranjar trabalho legalizado na refinaria de Lyon, como servente, onde serviu mais dezoito anos ininterruptos, sem arrependimentos ou desgostos de alma.
A sua escola não foi de aprender de carteira e caneta servido por professor mas sim de auto-didacta a servir os donos da terra de enxada e forquilha. Com a mulher de mal incurável, voltou ao sítio e vive cá, viuvo, há dezoito anos, da suada mas seca reforma francesa, na casa com meio hectar de terra que comprou com as poupanças de emigrante, por entre toda a espécie de animais domésticos e os inevitáveis dois borregos que cria cuidadosa e carinhosamente todos os anos.
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