sexta-feira, junho 05, 2009

GRANDES SUPERFÍCIES, ENGANO MANIFESTO


PROPRIEDADE E LIBERDADE
Andava eu acompanhando, de leitura, a actual discussão sobre novas instalações de grandes "Centros Comerciais" para a região do Algarve, que a proximidade de eleições locais trouxeram para a ribalta da actualidade, e constatava que mais uma vez, e ainda, os grandes trunfos dos candidatos é dar a entender quem é mais capaz de captar novos e maiores "CC" para o seu concelho. Já tinha uma ideia madura sobre esta questão, e sobretudo um pensamento assente sobre o nefasto impacto político e social que tal concentração provoca em vilas e cidades devido à perda irremidiável das "forças vivas" locais que eram a máquina da carruagem cultural e o oxigénio da transformação social harmoniosa para o progresso.
Eis que lendo um estudo crítico da filosofia de Locke deparo com este excerto: « A finalidade do governo é a proteção da propriedade, não sendo a propriedade um mero recurso económico para a maximização de proventos mas, ao mesmo tempo, o garante da independência política do cidadão face ao Estado e o fundamento do seu empenho enquanto cidadão do Estado. A liberdade e a propriedade são pensados em conjunto, não sendo colocadas em oposição mútua como mais tarde aconteceria no socialismo. Daí resultava uma consequência: um governo podia ser derrubado, se dispusesse da liberdade ou da propriedade dos cidadãos sem o consentimento dos mesmos». Segundo o autor, tal proposição filosófica, foi a fundamentação que justificou e desencadeou todo o posterior pensamento que deu origem à "Revolução Inglesa de 1688", à "Revolução Americana de 1776" e à "Revolução Francesa de 1789".
Históricamente sabemos que:

1. Na primitiva sociedade organizada "a gens", onde predominava uma liberdade e igualdade natural sem distinções, baseadas no vínculo de parentesco e da exploração da terra comunitáriamente sem hierarquias, essa ancestral igualdade e liberdade existente se perdeu com a criação do Estado moderno e suas redes de relações de produção, sociais e económicas de dependências orgânicas e hierarquizadas. O indivíduo deixou de ser um ente igual e livre entre uma hierarquia familiar e passou a ser um igual (cidadão)perante um território estatal (nacional) mas dependente e condicionado face aos desígnios de governação desse mesmo território.

2. No feudalismo, a organização política mais fielmente dirigida e instituida para representar o poder quase divino de quem detinha a posse da terra, os sem terra foram reduzidos a servos da gleba.

3. No colonialismo, os invasores destruiram a organização gentílica (de gens) dos povos indígenas, retirando-lhe as lavras e plantações próprias, apenas utilizadas sob a condição humana da necessidade de manutenção e sobrevivência da tribo. E deste modo, ao mesmo tempo que desproviam os indígenas dos meios de subsistência, criaram, a partir das suas terras cultivadas, as grandes plantações onde os espoliados locais eram obrigados a vender a sua força de trabalho a troco do pão prá boca. Com a perda da propriedade perdeu a liberdade e foi feito escravo da grande plantação.

4. Na "Revolução Russa" face às dificuldades de moldar as populações rurais e impor-lhes a produção sob os desígnios da revolução, enveredou-se por uma apropriação e concentração forçada da terra pelo Estado e desta forma, sem os meios de independência e subsistência, o povo ficou submetido à vontade inescrutinada duma reduzida elite vanguardista minoritária que se fez dona e senhor da propriedade e liberdade. Em nome da primitiva comunidade de liberdade e igualdade perdidas que seriam devolvidas, as populações foram reduzidas a simulacros humanos obedientes cegas sem vontade própria: isto é, novamente servos de senhores todo poderosos.

5. Hoje verifica-se um fenómeno de cariz algo semelhante: os pequenos comerciantes de rua estão sendo desalojados da propriedade dos seus antigos lugares de venda pelas "grandes superfícies" que concentram dentro de um único espaço toda a variedade de pequenos negócios que antes animavam e coloriam as ruas principais de vilas e cidades e eram sinais de vida nos bairros periféricos. A troca social que tal mudança provoca é demolidora: por cada emprego de baixa qualificação mal pago num "CC", fecha um pequeno negócio que empregava uma família e era o seu ganha-pão remediado. Mas o pior mal, induzido pela mudança em curso, é a transformação de centros populacionais como corpos sociais vivos, em amontoados de pessoas que vivem fechadas entre emprego-casa-"CC". Do conjunto dos muitos pequenos comerciantes saiam as "forças vivas", livres e independentes não sujeitas a qualquer espécie de relações de produção ou dependência, que criavam dirigiam ou colaboravam na imprensa local e regional, nas actividades das Sociedades Recreativas, nos grupos de teatro amador, nos clubes desportivos ou culturais, na crítica à governação da cidade e até na literatura de histórias e costumes locais. Os pequenos negócios criavam um número elevado de pessoas livres e independentes que juntos formavam escola interessada pela cidade (cidadãos) que ganhava massa-crítica suficiente para actuar como "forças vivas", isto é: tinham empenho e usavam em pleno os seu direito a exercer a cidadania.
Salta à vista que a substituição deste grupo de gente que fazia escola e impulsionava o desenvolvimento da cidade, por centenas de empregados de baixa qualificação cultural, sem tempo para leituras ou interessar-se pela cidadania, dependentes de uma hierarquia rígida sob o comando e controlo de um patrão invisível e que, a maior parte das vezes, nem se conhece, é um grande empobrecimento para a cidade. Esse empobrecimento da vida da cidade também, hoje em dia, salta à vista desarmada.

6. Mas, provavelmente, o pior ainda está por acontecer. Ou melhor já está acontecendo mas os edis e candidatos a edis fazem que não vêem. Hoje em dia, quase já desapareceram todos os tradicionais logistas de rua e, os novos negócios sobre novas tecnologias que surgem, são de imediato absovidos e sugados pela e para a grande superfície que não perde nenhuma oportunidade de oferecer de tudo para levar todos a juntar-se no seu espaço hiper.
Se estão em vias de extinção os pequenos negócios de rua, logo toda a oferta de venda que satisfazia e abastecia a cidade, quer isso dizer que a "grande superfície" já atingiu o limite ou ultrapassou a capacidade de oferta-compra dos habitantes dessa cidade. Se mesmo assim se continua a instalar, continuamente, mais e mais capacidade de mercado de oferta por meio de grandes espaços comerciais, por mais grandeza vistosa de catedral do consumo que assumam, (e as facilidades sem travão de financiamento ao consumo já vimos no que deu), vão entrar, necessariamente, numa espiral de concorrência desenfreada que levará à canibalização entre elas, e depois aos encerramentos em cadeia. Restarão imensos e grandiosos espaços de cidades em miniatura para o lazer tão procurado.

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