sábado, julho 17, 2010

UMA HISTÓRIA BORDEIRENSE


CRISTO, SALAZARISMO E O JOGO DE CARTAS

Um homem chamado Cristo, amigo de Baco e de jogar às cartas por copos, estava numa velha taberna iludindo o típico isolamento social do seu meio rural, local de encontro de amigos para desabafar sobre a dureza dos trabalhos de sol a sol nas pedreiras, nas trincheiras das estradas, no varejo e apanha dos frutos secos, na labuta de tratar dos campos sem horário, nas misérias da vida do povo pobre.
Estava no seu saudável convívio habitual pós-jantar jogando às cartas com os seus vizinhos e amigos de infância, quando entrou intempestivamente a GNR para apanhar os jogadores de cartas em flagrante. É que o salazarismo até a reunião de amigos numa taberna rural para conviver jogando às cartas e beber um copo para esquecer as mágoas das agruras diárias, tinha proibido com punição de multa e cadeia. E vigiava pela acção e sobretudo pelo medo, realizando raids à bruta como demonstrações de força para aterrorizar pobres desgraçados.
À ruidosa chegada e violenta entrada da GNR os jogadores de cartas puseram-se em fuga pela porta estreita das trazeiras que dava para o campo arborizado, por onde desapareceram. Só o pé-pesado e poeta popular Cristo, certamente com muitas taças emborcadas por várias rodadas de homílias jogadas, não fugiu ou, fazendo juz à sua omnipresença poética, deixou-se ficar para enfrentar os caras de ferro ameaçadoras dos GNR.
Discutiu com o cabo GNR acerca de que mal praticara para ser multado ou ser preso. Dialogou, argumentou e desenvolveu toda uma teodiceia popular em defesa da bondade do jogo de cartas como distracção e a taberna como único meio de convívio social e transmissão de conhecimentos de trabalho de ofício pela troca de ideias, do bem e bondade que constituia para ele estar com os amigos à mesa para uma inocente e alegre cavaqueira à volta das cartas e umas rodadas de copos. Disse que aqueles momentos de relaxe passados junto dos amigos a conversar, jogar e beber uns copos, eram o recarregar de energia, insuflar ânimo na alma e recuperar a força física para enfrentar os duros trabalhos do dia seguinte sem revolta. Até invocou em sua defesa de, como artífice das pedras e poeta popular, sentir uma necessidade intelectual de ouvir os amigos e interrogar-se a sí próprio sobre o sentido da vida: precisava daquele convívio como causa de inspiração poética para as suas quadras populares, nunca escritas.
Nada feito, nada demoveu a rígida autoridade a bem da nação dos GNR educada e formatada sob a égide da lei e da ordem salazarista. Nem sequer aqueles grandalhões fardados de cotim e correias, armados como se fossem para a guerra e broncos intelectualmente, tinham entendimento capaz para compreender as subtilezas mentais de Cristo, pensador poeta popular. Os guardas, recrutados no mundo dos soldados semi-analfabetos dos quarteis de cavalaria e depois escolarizados exclusivamente para agentes aplicadores da lei pela força e brutalidade, não só não entenderam a doutrina de Cristo em defesa do bem, e não do mal, que representava aquele inocente convívio interrompido sob o terror do império da autoridade, como tomaram a teodiceia argumentativa de Cristo como se este os quisese tomar por parvos.
Então, irritados puxaram do crachat de autoridade intocável e logo ameaçaram e intimidaram com prisão e multas que passaram ali mesmo. Mal os guardas abalaram os amigos voltaram a reunir-se no interior da taberna e foi nessa altura que todos acordaram pagar em conjunto as multas do taberneiro e do Cristo. E também nesse momento Cristo desabafou a sua indignada resignação com uma amarga e bela ironia inconformista, assim;

Cristo com a sua devoção
E o seu alto poder
Se Ele não teve salvação
Como é que a gente podia ter.

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