A UTOPIA DE JOSÉ PINTO CONTREIRAS 4
A MODERNIDADE
Com a
instalação e inauguração em 1943 sob aceitação e aplauso total, rapidamente a
Sociedade Recreativa Gorjonense se transformou num sucesso social frequentado
por todo o povo residente e gente de todos os arredores à volta, e passou a ocupar
o lugar central de convívio e animação domingueira para a população. Todos
podiam frequentar, sócios e não sócios com aprovação dos dirigentes que só
recusavam a entrada a bêbados e desordeiros.
A Sociedade
Recreativa fez-se assinante do jornal “O Século” e adquiriu uma “telefonia”
a bateria de carro para ouvir as notícias nacionais mas também servia para ouvir os “postos”
estrangeiros em ondas curtas, nomeadamente, a BBC e “Rádio Moscovo” acerca da
guerra que, embora proibidas e dos ruídos introduzidos para boicotar a audição,
eram muito ouvidas dada a conhecida falta de independência e manipulação das
notícias oficiais do regime salazarista.
Deste modo a
Sociedade Recreativa Gorjonense foi uma inovação que civilizou os costumes
rudes antigos, quer pela actividade recreativa com organização de bailes,
festas e jogos quer pela actividade cultural com peças de teatro de sátira local
ditas “Récitas”, leituras de jornais e audições rádio-telefonia, quer ainda na
actividade social com festas de beneficência para angariação de fundos em prol
dos muito pobres e doentes.
Para
abrilhantar os bailes eram chamados os melhores e mais famosos acordeonistas e
algumas vezes grupos chamados de “Jazz-Band”. Os bailes decorriam sob a ordem e
vigilância da Direcção que não admitia provocações, desordem ou guerreias na
sala nem gente a cuspir no chão ou com chapéu na cabeça.
As raparigas
mais prendadas passaram a frequentar o baile e serviram de modelo para as
outras que passaram a ir à cabeleireira fazer permanentes vistosas e rapar as
pernas cabeludas até então considerado um símbolo atractivo da sexualidade
feminina.
Os rapazes
passaram também a tomar em conta o modo de vestir e apresentar-se, como
pretendentes, face às “moças” de seus olhados. Sobretudo, os rapazes passaram a
não usar botas cardadas ou sapatos e peúgos rotos, que logo eram notados, pelas
mães e avós das moças, como referências pouco abonatórias para pretendente a
suas filhas e netas. Também eles passaram a usar fato completo feito por medida
no alfaiate profissional, anéis vistosos ditos “cachuchos”, gravata com
alfinete, sapatos engraxados e até alguns apresentavam-se com penteado às ondas
feito na cabeleireira, muito ensopado e
cheiroso de brilhantina.
Também as
“moças” raparigas tomaram-se mais discretas e cuidadosas nas “tampas” ou
recusas de ir dançar com alguns moços, ou porque não gostavam do moço ou porque
já tinham “par certo”. “Tampas” essas que antes tinham sido motivo forte de
grandes desordens e guerreias nos armazéns de “trazer balho”.
A nova ordem
estabelecida e aceite voluntariamente impunha a observância de igualdade de
respeito mútuo, mesmo entre locais e vindos de fora, o que permitia maior troca de contactos e conversas entre moças
e pretendentes e, deste modo, alargava-se a liberdade de escolha no
enamoramento entre moços e moças em detrimento da vontade de pais, mães e avós.
Assim, tal
como para as “moças” raparigas e “moços” rapazes a Sociedade Recreativa foi uma
força civilizadora face a hábitos e costumes antigos, também para os pais e
irmãos mais velhos o foi por vivência própria com regras e influência prática e
próxima de seus familiares jovens.
Sob a ordem imposta pelos Estatutos, levados
à risca por uma Direcção de homens fundadores respeitados, foram interditos os
jogos de valentia como o “jogo do teso” ou “abarcas” e "despiques" de jogos de
pernas e cajados, que eram vulgares nos antigos armazéns de “trazer balho”.
Como
medida preventiva, à entrada, os grossos e nodosos cajados de fabrico próprio
para serem os mais resistentes e dolorosos nos jogos, eram deixados na Direcção
e só devolvidos à saída.
Progressivamente
os novos hábitos e comportamentos foram tomando conta do dia a dia até que, ser
o mais valente ou o que aguentava beber mais, deixou de ser símbolo de força e
virilidade.
Sob a
Bandeira bordada, o Hino e Marcha próprias, criadas por figuras artísticas
locais ou amigas, cantados por grupos de jovens gorjonenses e escutados silenciosa
e respeitosamente por todos de cabeça descoberta e chapéu na mão, a Sociedade
Recreativa tornou-se um símbolo muito forte de identidade e unidade do povo de
Gorjões e seu maior orgulho.
Com os
Estatutos aprovados e sua consequente aplicação o povo pode conhecer e
apeeender pela primeira vez como, por via prática, se exercia o aspecto mais
fundamental da Democracia: o voto livre. E não deixa de ser irónico que um
poder político que escondia, proibia e reprimia ferozmente o ensino e qualquer
organização ou expressão de Democracia na sociedade portuguesa, tornasse uma
exigência obrigatória, nos Estatutos das colectividades ditas Sociedades
Recreativas, o uso de processos democráticos. Pois regulamentava um período
findo o qual toda nova Direcção tinha de ser eleita em Assembleia Geral pelos
sócios pelo método democrático de um sócio um voto.
Quer as
discussões travadas com as pessoas propostas para nova Direcção quer,
sobretudo, o facto de posteriormente haver uma escolha por voto livre, fez
alertar e crescer em muita gente uma consciência democrática antes
desconhecida. Aprenderam o que significava a liberdade de escolher pelo voto
livre pessoal e passaram a perceber e apreender porque lá fora os Presidentes
mudavam de tempos a tempos e por cá só mudavam por morte.
Na totalidade
da sua acção pode dizer-se que a Sociedade Recreativa foi uma escola de
educação cívica e ética que pela sua prática virtuosa no uso e defesa de
progressos civilizacionais durante gerações, ensinou os novos gostos, maneiras,
valores e comportamentos racionais marcando a sua criação o momento de entrada
dos Gorjões na modernidade.
(continua)
(continua)
Etiquetas: a utopia, josé pinto contreiras
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