segunda-feira, fevereiro 23, 2009

O BARROCAL ALGARVIO




E OS FRUTOS SECOS
Quando o amante de Baco, que não das bacantes, e sensível poeta popular, contador de estórias em quadras impressas em folhetos de feira, o "Bexiga", mais o rude cavador analfabeto "Blé-Chota" eram contratados para "Guardas" das fazendas dos pequenos proprietários e usavam um alto e grosso varapau de marmeleiro enozado até à altura dos olhos, eu era miúdo de escola primária e as belas árvores nativas deste local estavam engalanadas de frutos verdes prestes a serem frutos secos. As gigantescas e frondosas alfarrobeiras dos nateiros, as esguias e elegantes amendoeiras das terras baixas planas, as figueiras de enormes copas redondas arrojando o chão, exibiam exuberantemente, por entre a folhagem, brilhando nos olhos com Sol e céu azul ao fundo, a sua natureza de mães fartas e abundantes trazendo no regaço os frutos que foram flores, que serão fartura no celeiro, que serão sustento e pão na mesa. Nesse tempo, estas árvores belas nativas únicas do Barrocal algarvio, ensinavam-nos o verdadeiro significado do simbólico e sentimental "milagre das rosas" metamorfoseadas em pão.
Nesse tempo, os frutos secos não valiam ouro, mas valiam o sustento diário, o remédio na doença, a reforma na velhice. Por isso os proprietários se uniam para contratar os "Guardas" anuais naquele período, porque a "moçanhada" escolarizava-se de inteligência agilizada, atlética, astuta e lutadora na escola prática ao ar livre dos jogos de brincar pelos matos e de roubar fruta dos quintais e amêndoas para comer e jogar ao "arrabola", e outros que por necessidade, o sol nascia à meia-noite como dizia o povo, iam de noite encher sacas do fruto seco alheio. Durante todo o tempo do "varejo e apanha", os "guardas" apenas permitiam o "rabisco" nas fazendas já totalmente "apanhadas" pelos donos. Para estes, sendo os frutos secos um bem precioso, pelo valor comercial, como alimento próprio e do gado, davam voltas e voltas às árvores até nem um fruto verem no alto da copa e o mesmo repetiam varrendo o chão com o olhar. Apenas os frutos invisíveis aos olhos, tantas vezes gastos do uso e cataratas, restavam para os "rabiscadores". No meio dos matos, das moitas e dos silvados, dos torrões ou dos restolhos altos que obstruiam o ver de olhos cansados, o rabisco era bem mais produtivo e rentável para os moços de ver de águia.
Esse tempo durou até aos fins dos anos sessenta e mesmo localizadamente até à revolução de Abril, portanto ainda mais de uma década depois da descoberta do Algarve turístico pelos ingleses. E ainda só muito recentemente desapareceu a última geração de homens e mulheres, casais de remediados propretários, que sobreviveram sempre única e exclusivamente do duro e nobre trabalho do varejo e apanha dos frutos secos.
Os "frutos secos" foram durante décadas a maior riqueza produzida no Algarve, para além de permitirem a sadía subsistência de milhares de pequenos propretários, eram, com as conservas de peixe, a maior exportação da região. Tão grande era a sua importância económica que, em dias certos da semana, juntavam-se no "Café Aliânça", "negociantes de frutos secos" vindos de todo o Algarve para, sentados à roda de mesas e saltitando de mesa em mesa, "vender e comprar às sacas", combinando preços e datas de entrega que rabiscavam em pedaços de papel amarrotados nas algibeiras ou em mortalhas para cigarros de onça. Uma verdadeira "Bolsa de Valores" onde a moeda de troca eram "arrobas" de frutos secos, comprados e vendidos na hora, a preços de futuro, para entregas a prazo de meses. Uma bolsa de valores onde se jogavam pequenas fortunas, que fez ricos os mais espertos ou com mais sorte, mas também levou alguns à ruina total. E tudo feito apenas "sob palavra", e não consta que tenha havido falcatruas ou processos fraudulentos. É que estes homens, eles próprios, forças vivas do Barrocal, tal como as velhas árvores fundadas na terra nunca mudam de natureza, também eles enraizados na terra e educados na escola das suas árvores, eram homens de um só carácter.

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