quarta-feira, junho 24, 2009

UMA HISTÓRIA GORJONENSE V


DA EMIGRAÇÃO, A "SALTO"
Para fugir à pancada de marca grossa do pai, recém-regressado a casa, deixou a escola, mal entrara, e aos oito anos foi trabalhar prás hortas como "moço de servir". Aos catorze anos voltou a casa, já sem pai, e foi trabalhar prá "Casa Pinta" dos Agostos, como rapaz para todo o serviço de masculina dureza às parelhas de lavrar, à rabiça do arado, à enxada e machado ou à vara comprida do varejo de frutos secos. Ao serviço desta casa esteve dezoito anos ininterruptos, tal a fidelidade, entrega e sobretudo a dedicação posta no seu rude trabalho de sol a sol. Já homem de calos altos e gretas fundas em mãos pretas e rijas como ferro, olhava para a leva de amigos que davam o "salto" para França, e que o faziam matutar à hora do descanso e lhe soltavam o sonho à noite na tarimba.

Precisava de arranjar o dinheiro para pagar o bilhete de passagem ao "passador". Tinha de trabalhar ainda mais no duro: ingressar nos grupos do trabalho para a élite dos rijos e tesos a quem eram dados trabalhos à tarefa e pagos conforme a quantidade produzida. Assim, foi trabalhar para as comionetes de carga dos empreiteiros de estradas que carregavam brita nas pedreiras, paga à camionete: grupos de dois ou três homens lado a lado, em plena forma e força física carregavam à mão e força de perna e braço, sem parar, camionetes de brita ao desafio uns com os outros. Dias, meses e anos neste repetitivo fatigante trabalho que só os duros "como um moiro" aguentavam, levava-os a uma destreza de movimentos e manipulação da forquilha, que faziam destes homens verdadeiras máquinas de alto rendimento sem falhas ou avarias. Deste modo árduo e altamente esforçoso, conseguiam aumentar em cinquenta por cento o número de carradas diárias e o salário de modo correspondente

Três anos três, andou o Virgílio, nesta labuta de moer ossos e secar carne, para poupar o necessário custo do "salto" e ainda ficar com algumas sobras para despezas de viagem, e provisão de adaptação e imprevistos na nova situação. Dez contos era o preço de mercado naquela altura: estava desconfiado, o Zé Apolo, um ano antes, abalara por sete, contudo sabia que tinha corrido tudo bem, quer o "salto" que fora fácil, quer o arranjar trabalho e papéis em França, e isso animava-o. Já tinham ido tantos e estavam bem: ele não era menos que os outros e isso determinou-o. Havia ainda um pormenor importante a tratar: tinha de saber fazer o nome para assinar os papéis em França e provar que sabia ler e escrever. Também para resolver essa situação já havia negócio próprio e adequado e, com um mês de frequência bem pago na "escola" certa, aprendeu a rabiscar o nome, soletrar e ler uma carta e assim obter o apto de emigrante a "salto".

Ele, o Florival, o "Joquenito" e mais dois dos arredores, meteram-se no combóio e desembarcaram na Guarda à noite onde um taxista avisado aguardava e os levou para uma casa de campo isolada. Aqui fez-se a conferência administrativa: verificação de identidades, pagamentos, plano da passagem de fronteira, plano de operações para a caminhada e travessia de Espanha, aprovisionamentos de comida, água, tabaco, etc. Pela calada da noite seguinte, com o saco da roupa e despensa às costas, guiados por um "passador de fronteira" e a pé por veredas florestais, atravessaram a raia até à "casa branca", uma enorme casa de grande lavoura e muito gado que servia de apoio e ponto de reunião ao negócio do "salto". Ao contrário do prometido, foi-lhes dito que alí teriam de aguardar a chegada de mais grupos contratados vindos de diversas regiões.

Aguardaram dois dias e assistiram à chagada de vários grupos até um total de sessente e duas pessoas. Algum receio e mal estar acarretou esta espera e sobretudo o inesperado número de gente que aumentava as dificuldades de tão longa viagem clandestina: para mais de entre o grupo constavam duas raparigas jovens que suscitavam risos e conversa só para homens. Contudo era animador ver que tudo decorria com ordem e boa organização e, na hora da arrancada, o passador informou todos: «as raparigas serão respeitadas e tratadas entre todos tal qual os homens entre sí e quem se meter com elas leva um tiro nos cornos e é atirado a uma ravina com rio lá no fundo, enquanto sacava um pistolão do bolso». «Ó porra, aquilo meteu respeito e cagaço que ninguém abriu bico», diz o Virgílio, e «daí em diante o passador era como um pai: mandava e a gente obedecia sem piar».

Foram dezoito noites por caminhos e veredas de vales e cerros, planuras e montanhas, para atravessar Espanha entre a Guarda e os Pirinéus. Durante o dia estavam escondidos em casas agricolas de aldeias isoladas, escolhidas e preparadas para o apoio ao pessoal da longa marcha da emigração clandestina: a paragem de dia servia de descanso e para reabastecimento de comida e tabaco ou tratar da higiene. Pelo sossego da noite o grupo arrancava sempre guiado por um passador que em muitos percursos era substituido duas e até três vezes por noite. Não podiam falar alto nem fumar à vontade durante a caminhada da noite: só com o lado aceso do cigarro bem fechado na mão para evitar que brilhassem luzes denunciadoras na escuridão total. Num dos percursos um dos homens caiu numa ravina e foi parar ao rio onde se salvou segurando-se aos arbustos da margem e onde o passador, avisado do acidente, interrompeu a marcha e chefiou um grupo de homens para procura e salvamento do acidentado. Desde então a confiança nos passadores foi total e o grupo de desamparados clandestinos passou a acreditar que ia ter sucesso, chegar ao destino e que o dinheiro fora bem entregue.

Ao fim dos dezoito dias chegaram a um alto dos Pirinéus espanhois e na noite seguinte fizeram a travessia para França sem dificuldade. Do lado de França foram colocados em carrinhas e levados no mesmo dia para Paris junto do bairro do bidonville onde residiam já centenas de portugueses. Como o Virgílio ia dirigido a Lyon, onde tinha o cunhado, e sem saber palavra de francês e para não ser apanhado, apanhou um taxi no qual gastou o resto do dinheiro que levara e já trocara, com perdas, em francos junto dum emigrante, ususário banqueiro de bidonville. Em Lyon esteve trinta dias em casa, com saídas às escapadelas, até obter o contracto de trabalho que lhe permitisse trabalhar e requerer os "papéis" de residência e a condição de emigrante oficializado. Foi trabalhar para o "bâtiment" como servente a ganhar dois francos e meio à hora, menos um franco do que era o normal. Contudo, dada a vontade e disponibilidade para os trabalhos duros e sobretudo face à quantidade de trabalho produzido o patrão, ao fim de pouco tempo, tratou de o legalizar: «fui fazer o lugar de dois franceses sem problema» diz o Virgílio. Mais tarde arranjou trabalho como servente no serviço de manutenção da refinaria de Lyon onde permaneceu dezoito anos ininterruptos, até regressar a Portugal com a mulher doente de doença incurável.

Ainda capaz e a trabalar no duro e sem mulher à noite para companhia a vida ainda se tornava mais custosa de passar. Não faltaram madrinhas e escolheu um arranjinho: juntou-se e, sete anos serviu Virgílio uma mulher viúva e mais três serviu outra, sempre da única forma que aprendera e usara toda a vida, trabalhar no duro para a casa comum. Ao menor surgimento de leve dúvida sobre tentativa de caça ao património próprio, que lhe custara o pão amassado pelo diabo, crescia-lhe de imediato o sentimento de exploração e desconfiança que o fez romper todas as parcerias. Ainda se gaba que as viuvas lhe rondam a porta mas prefere viver só, com as suas cabras, borregos, coelhos, cão e gato na sua casa e é o meu vizinho e companheito de mesa para a bica, onde me conta os passos da sua vida. E confessa-me que pior que as mulheres, que envenenam mas não matam, são as ouriças prenhas que mijam na erva que as cabras e as ovelhas comem e depois morrem envenenadas.

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