domingo, agosto 16, 2009

UMA HISTÓRIA GORJONENSE VI


CASA DE DEUS E CASA DO DIABO
Contou-me a Elvirita, nora do Tio Zé Luz do Mato que lhe contara a sogra, que certa vez, em tempos antigos quando se andava mais de pata descalça que calçada e quando os pobres só tinham uns sapatos ou umas botas de coiro grosso para o trabalho do campo, conservadas à custa de unto de cebo, a Francisca Morgadinho, moça na altura, pediu emprestados uns sapatos mais condignos para ir à missa. A Tia Conceição, pequena proprietária mais abastada e mais amiga de luxo grave mas recatado, como boa cristã praticante amiga de ajudar, esmerou-se para que a vizinha não ficasse mal vista, perante a olheira assistência, durante o ofício eucarístico na capela de Santa Catarina. Tratou de emprestar-lhe os mais novos e reluzentes sapatos pretos de verniz que tinha comprado recentemente numa loja fina da Vila de Loulé em Sábado de Mercado.
Encantada com os sapatos reluzentes de brilho espelhado, que até lhe ficavam a preceito e disfarçavam lindamente os pés ossudos calejados, lá foi a Morgadinho cheia de cuidado, pelo caminho de cabras, de passo incerto e aos lores para evitar riscar os sapatos com topadas nas pedras que enxameavam o caminho. Não pôs nunca um pé no chão sem previamente certificar-se de que não tropeçava em pedra, talisca ou lasca. Ela queria devolver os sapatos tal qual a Tia Conceição lhos entregara: era sua intenção de honra.

Mas uma intenção boa pode ficar ferida de morte se uma tentação ataca. Naquele dia havia bailarico no armazém do Tio Sebastião com baile de roda e dança abraçada ao som de concertina. A Morgadinho, dedicada a tudo que gostava, galhofeira e divertida com os homens, era crente e sincera na sua fé com a imóvel Santa Catarina mas era igualmente sincera com os impulsos do coração e devota do bulício festivo e à alegria do calor do contacto humano.

Não resistiu, nem podia quando tinha oportunidade única de meter inveja a elas e despertar os olhares deles. Iria, decidiu, apostando consigo própria que seria tão grande o cuidado no bailarico como fôra no caminho para a missa. O seu compromisso, fundamento de honestidade indiscutível, era devolver os sapatos tal qual os recebera. Assim decidido, assim cumprido: dançou e catrapulou sem perder de vista o seu compromisso consigo própria. Alguns lhe puseram a mão em cima e na cintura mas ninguém conseguiu por-lhe a bota cardada ou o sapato grosso em cima dos sapatos que foram chamariz de olhares invejosos. Cerca da meia-noite, quando os homens aguardentados desfizeram o bailarico e deram em bater-se no jogo do teso, voltou para casa satisfeita do dever cumprido. Logo de manhâ do dia seguinte iria devolver e agradecer à Tia Conceição.

Cheia de felicidade, afinal tudo correra de acordo com o plano de sua boa intenção e vontade forte, lá foi montada sobre toscos sapatos e levando na mão os sapatos emprestados, que tinham sido sua alegria um dia inteiro, limpos e engraxados como novos, metidos na caixa tal como o logista os vendera. Entrou pelo portão aberto do quintal murado e já a Tia Conceição a esperava no meio do pátio-almenxar de carantonha cerrada. Para desanuvear o ar carregado, fez-se jovial e disse sorrindo:
- Olhe, veja, a caixa impecável e os sapatos estão lá dentro tal como a caixa por fora: como novos trazidos agora da sapataria. Ficam-me a matar, ando lindamente com eles, não tropeçei numa pedrinha de fisga sequer, nem um risquinho têem. Muito agradecida Tia Conceição, ajudou-me a passar um dia muito querido para mim, na missa todos olharam invejados dos bonitos sapatos que levava -.
- Ó minha desenvergonhada -, respondeu a Tia Conceição pegando na caixa dos sapatos, - julgas que não sei tudo? Que não sei já que depois de ires à missa, à casa de Deus, depois foste para o depravado bailarico, à casa do Diabo, com os mesmos sapatos? E agora queres que eu volte a calçar tais sapatos para me apegarem o Diabo ao corpo? Nem quero vê-los mais, nem tocar-lhe com as mãos por fora e ainda menos com os pés lá dentro apertados ao maldito. De certeza que se me enfiava nos pés e subia pelas pernas acima até tomar-me o corpo todo. Domingo, quando fosse à missa pisava o chão sagrado da casa de Deus com esses sapatos encharcados de Demónio e tocava nas coisas de Deus com as mãos sujas de pecado, e depois? Queres que vá para o Inferno, não é minha cara sem vergonha? Queres, mas não te faço a vontade -. E atirou a caixa com os sapatos por sobre o muro afora, para o lado do mato, apontando o portão de saída e gritando: - Rua, rua -.

Foi para casa a Francisca Morgandinho, logo muito triste e envergonhada e assim o resto do dia. Andou uns dias a matutar com a cabeça no assunto, juntou em concílio a memória dos acontecimentos e nada detectou de comportamento indigno. Rápidamente começou a convencer-se que não cometera qualquer mal e muito menos qualquer crime. Não achava jeito nem nada direito aquela história da casa do Diabo e de este "apanhar-se" por contágio com os homens numa festa divertida e às claras. Pensou para sí que, se dar o ombro ou a cintura para um homem abraçar era negócio com o Diabo, então a outra que dormia na cama com o homem dela na escuridão, já tinha sido apanhada pelo Diabo há muitos anos. E depois, achava ela, que se uma festa alegre e gostosa assim era patrocínio do Demónio, este gostava do que ela também gostava sem maldade, e então não seria assim tão mau como o pintavam.

Chegado o tempo de estar plena e conscientemente convencida da sua inocência, achou que imprudente mesmo era desperdiçar daquele modo um belo par de sapatos que a ela lhe fazia tanto jeito. Um dia, com a Tia Conceição e o pessoal fora de casa, era tempo do varejo e apanha dos frutos secos, ela foi, sorrateiramente, apanhar os sapatos do mato para sí. Levou-os uma, duas, três vezes á missa e bailaricos e nunca teve sensações diabólicas no corpo, antes pelo contrário.

A Morgadinho, mulher sobretudo crente em sí e na tradição de viver lealmente sem más intenções e maldades, de prática virada para as felicidades terrenas, usou os sapatos enquanto duraram e sempre que precisou deles. Aqueles sapatos ajudaram-na a saber levar a vida com os pés melhor assentes na Terra: foram, para ela, um acrescento de sabedoria.
A Conceição, mulher crente piedosa e grave, embora ao corrente do que se passava, jamais falaria de tal assunto com medo de cometer pecado ou provocar ofensa ao Céu, ou a ira do Inferno. Aqueles sapatos foram um permanente tormento religioso escondido: foram, para ela, um martírio e reforço da sua crença.

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