sábado, outubro 31, 2009

O DISCURSO DA QUALIDADE


A CIDADE E O CAMPO, NOSSOS.

O discurso da qualidade tem lugar, quando nas sociedades desenvolvidas que já têm práticamente tudo, deixa de ser preocupação o básico e imprescindível e aquilo que foi supérfluo começa a ser uma necessidade. Este discurso é evidente a nível global entre países pobres e países ricos mas, também existe ao nível de microcosmos locais e sobressai, nomeadamente, entre Cidade e Campo do mesmo Concelho, como é o caso do nosso.

Basta ler a imprensa regional, ou no caso ler regularmente Blogues como o ADF (A Defesa de Faro), artigos e comentários, para saltar à vista o discurso da Cidade. Este não tolera a deficiência dos serviços públicos ou na gestão, protesta contra a falta de qualidade da vida urbana, pouco se fala e exige de mais empregos e locais de trabalho mas muito se fala e exige de mais e melhores locais de lazer, não se exige mais escolas mas que o ensino seja excelente, não se pede mais iluminação para as ruas mas que esta nunca falhe e os postes não atrapalhem, não se discute a falta de ruas mas sim a lizura do pavimento e passeios e falta de estacionamento para automóveis, não se discute a falta de água em casa mas sim a boa ou má potabilidade dela.
Eleva-se a tal ponto a exigência de qualidade que, hoje em dia, estranha-se que alguém morra num hospital: não se entende que se possa morrer precisamente no local onde tudo é concebido e adequado para fazer sobreviver. Já questionamos a morte como devida a uma falta de qualidade de meios e ciência: quase exigímos dos outros que sejam Deus. E como é na Cidade que estão resolvidas todas as necessidades primárias, os cidadãos voltam-se para exigências contínuas de perfeição, quer de bens materiais como espirituais, num movimento irracional no sentido de se imaginarem a caminho de ultrapassar a condição humana e caminhar para a condição divina num espaço sagrado edénico onde a Cidade representa o centro ou o altar.

O Campo, sempre relegado para lugar secundário desde a criação da pólis, tem um discurso por imitação: se a Cidade tem, também quer ter o mesmo. Nem podia ser diferente: não tem massa crítica para ultrapassar os preconceitos citadinos impostos pela linguagem do poder e dominante. A própria Lei que ordena e organiza o território fá-lo em benefício da Cidade e em detrimento do Campo: a Lei é a imagem do poder da Cidade e um mimetismo do pensamento citadino.

Quando se pensava que concluidas todas as necessidades prementes na Cidade, esta voltar-se-ia para resolver os mesmos problemas no Campo, surgiu o discurso da qualidade. Tal discurso volta a impôr novas e radicais exigências qualitativas para a Cidade que condicionam materialmente a resolução de necessidades ainda básicas para o Campo.
Assim a Cidade continua, segundo o discurso da qualidade, a reivindicar sempre mais e melhor para sí. Assim o Campo continua, submerso na onda espaventosa e algo retórico-artificial discurso da qualidade, esbracejando por socorro na tentativa desesperada de evitar ser cadáver.

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