FRANCISCO DIAS BEXIGA
Muito miúdo ainda fui conterrâneo do poeta Aleixo que frequentava, cantava e improvisava pelos lugares à volta de Loulé e também aqui nas "vendas" locais e já era muito falado e apreciado aqui nos Gorjões. O meu pai tinha a 1ª edição dos livros "Quando Começo a Cantar" e "Intencionais", compilados por José Rosa Madeira e Dr. Magalhães, do Liceu de Faro e mais tarde meu professor, e editados pelo Circulo Cultural do Algarve de Faro, que eu li por altura da minha 4ª classe.
O Aleixo foi a figura inspiradora de muitos outros poetas e poesia popular que masceu por estas bandas e perdura ainda hoje, e de quem mais se falava, contudo na minha juventude, aqui nos Gorjões, uma outra figura típica de poeta popular "Quadrista" já dava nas vistas e juntava muita gente à sua roda para o ouvir cantar e dizer as suas quadras: "Quadrismos" como ele lhes chamava. Era precisamente o "Bexiga" da Cruz de Pau, hoje Agostos, que era "guardador de terras" locais no tempo dos frutos secos e passava grande parte do tempo aqui nas "vendas" do Alto.
Eu, que já tinha feito o 3º ano do Liceu e escrito aqueles versos de amores infantis que fazemos às moças do nosso desejo, metia-me com o Bexiga e ele, sempre diante da sua "nossa senhora" que esvaziava de um trago e continuamente mandava encher ao taberneiro, na sua linguagem arrastada etílico-metafísica quase imperceptível, dizia-me: "ouve lá esta ou estudanteco a ver se percebes o poeta Bexiga, nam, nam vais perceber, mostra lá as mãos, nam, nam vais perceber, não tens calos assim, nem casacos rotos, não vais à ceifa, nem ao varejo, nem ao berbigão nem comes pão seco e dormes numa manta, nam, tu não percebes, os quadrismos do Bexiga são feitos destas coisas e tu não sabes, nam, mas ouve lá". E eu ouvia, gostava, ria-me ou ficava intrigado, conforme o tema, mas de facto eu não percebia de que matéria o Bexiga se servia para construir os seus quadrismos. No seu íntimo as dores que pariam a sua poesia popular eram as da sua vida dura de andarilho dependente da sobrevivência e as de baconismo necessárias para soltar o cante amargo do poeta.
Que eu não percebia os caminhos poéticos do Bexiga está bem patente numa quadra que lhe fiz em 1959, inocentemente escandalizado por pensar que seria melhor poeta deixando a bebida e que era assim a 1ª glosa:
Tu sabes bem que t'admiro/Pelo que sabes fazer/Mas gostava de te ver/Fazer dessa vida retiro/O homem a que me refiro/Bebe sem conta e medida/Por isso tem a sina já lida/E eu tenho pena ao vê-lo/Bêbado caído no desmazelo/Bexiga, poeta deixa a bebida.
Mas a minha compreensão e estima pelo poeta já era notória, como comprova o 1º verso da 4ª glosa da mesma quadra:
Onde quer que esteja o Bexiga/o poeta do improviso/Há nos seus olhos um sorriso/E nos seus lábios uma cantiga. Hoje é um dia feliz para a memória do poeta Bexiga e consequentemente para a memória da nossa Freguesia, com o lançamento do livro "Rabiscos de Um Poeta" que contém uma valiosa recolha de quadras suas, publicadas em folhetos de feira, ou que andavam dispersas e aos bocados na boca de pessoas que com ele conviveram. Foi difícil e levou tempo reunir e compilar o acervo poético dado que não havia um baú com a produção do poeta guardado, mas foi importante o trabalho de preservação desta memória popular, cujo conteúdo em grande parte se refere a acontecimentos da nossa História local.
Muitos se riam e tinham pena do estado físico decadente do poeta, mas para esses que o olhavam depreciativamente face à sua aparente miséria, o nosso poeta respondia, como só aos poetas visionários com futuro é possivel ter, com a sua filosofia e prática de vida simples de pobre que "tendo um bocado de pão já é ter grande beleza" e que um poeta "Em qualquer cantiga diz, sendo pobre vive bem", sempre imbuído de um sentimento que vai muito para além da comezinha abundância terrena do "ter", desconsiderado e inferior face ao "ser" onde "há mais riqueza num pobre feliz que num rico com tristeza", como com imensa simplicidade e claramente disse na quadra, "Vida Alegre" cujo mote, 3ª e 4ª glosas falam assim:
Mote,
Vida alegre, quem a tem/Ainda hoje é uma riqueza/Sendo pobre vive bem/Do que o rico com tristeza.
3ª glosa,
Qualquer coisa lhes sobeja/
Andam livres de ilusões/Governam-se com uns tostões/Andam livres da inveja/O que esta gente deseja/
É ganhar algum vintém/Só saúde lhe convém/A esse pobre infeliz/Em qualquer cantiga diz/Sendo pobre vive bem.
4ª glosa,
Com tão boa protecção/Esse pobre é sempre forte/Desgraça para ele é sorte/Já de rastos pelo chão/Tendo um bocado de pão/Já é ter grande beleza/Canta o fado à portuguesa/Vai a toda a brincadeira/Tem mais dinheiro na carteira/Do que um rico com tristeza.
Com o seu livro de "quadrismos" junto de nós o poeta "Bexiga" volta ao nosso convívio a partir de hoje e para ficar.
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1 Comments:
Ao poeta M. F. B. M. Alfort
Mote
Os poetas dos Gorjões
Todos dois têm razão:
Nunca fomos aldrabões
Mas há sempre um aldrabão.
I
O Nascimento e o Bexiga
Dizem perfeitamente
Não se metam com a gente
Que a gente não os obriga;
Façam qualquer cantiga,
Deixem-se de ilusões.
Todos os figurões
Que querem ser mais do que nós
Fazem levantar voz
Os poetas dos Gorjões.
II
Se a gente, p’raí, faltar
A algum fadista, ao respeito,
Digam todos que é bem feito
Nada têm que teimar.
Temos, no nosso lugar,
Dentro da nossa Nação,
Nenhum mete o taralhão
Com qualquer outro fadista,
Com provas líquidas à vista,
Todos dois têm razão
III
Ó tu poeta encoberto
Declara bem quem tu és;
Que até as unhas dos pés
Tirava-te eu, meu esperto.
Meu nome está em aberto
E o teu anda aos empurrões;
Espantalho dos leões,
Não vês que não sabes nada.
Eu e o meu camarada
Nunca fomos aldrabões.
IV
Eu quero andar sossegado,
Sou uma boa criatura,
E há sempre uma má figura
Que não
me deixa estar calado.
Estava agora descansado,
Com muita satisfação,
Pois já pensava que não
Se metessem mais comigo
E agora, mesmo, é que digo!
Mas há sempre um aldrabão.
- Francisco Dias Bexiga
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