terça-feira, junho 03, 2008

RABISCOS DE UM POETA


RABISCADOR DE POESIA

Francisco Viegas Dias, que assinava as suas quadras, ou "quadrismos" assim lhes chamava, como Francisco Dias Bexiga e era conhecido de todos apenas como "O Bexiga", tem desde o dia 31 de Maio de 2008 a sua poesia, feita dos farrapos da sua vida, impressa em livro. Saído quase analfabeto da instrução primária salazarista, o seu vocabulário era restrito e o pensamento estava limitado às expressões, ditados e analogias de uso comum rural. Mas estas limitações que são importantes para a poesia académica elaborada, não são impecilho e pouco contam para uma genuina veia poética popular como acontecia com o Bexiga. Ele, mesmo com as palavras simples dos rurais "montanheiros" do Barrocal Algarvio, conseguia transmitir com clareza juizos sociais e morais e conceitos de vida entre o ser e o ter, tirados da própria experiência de toda a sua vida tentar ser livre (libertário), mesmo sabendo que em troca o esperava o trabalho duro, miséria e fome.
O Bexiga foi inteiramente coerente com a sua filosofia de vida que desprezava as riquezas em benefício do prazer de viver sem cuidados do futuro. O futuro para ele não ia além de estar vivo no dia seguinte. A sua preocupação com o futuro limitava-se a imaginar como ganhar em cada dia os tostões para o pão e vinho diário, especialmente o vinho em goladas de "nossas senhoras". Face ao seu decadente modo de vida, os piedosos expressavam pena ou desprezavam-no, jamais podiam entender que o olhar de poeta à vida não está virado para o corpo mas para alma.
Este conceito poético, da supremacia do valor do espírito sobre o corpo, que o poeta cumpriu integralmente até no seu propositado abandono à morte, está bem patente na quadra "PARA NÃO TER MORTE INSTANTÂNEA", na qual o mote diz " Quem comer uma vez por dia/E andar como nasceu/Vive com mais alegria/Do que aquele que morreu." A partir deste conceito que tem implícito o seu modo e pensamento de vida, ele faz uma crítica mordaz e algo cínica sobre os que morrem de fartura e aqueles que, como ele, comem apenas para não morrer no dia a dia, patente nos versos, "Ter uma cama de palha/Sem ter mantas nem lençóis/Cantar como os rouxinóis/É assim que se agasalha.", referindo-se aos miseráveis enquanto aos abastados mortos dizia, "O pobre morto abastado/Na sua vida passada/Morreu, já não conta nada/Guardou para ele o pecado." O pecado da gula do ter, do património gordo.
As suas quadras têm todas elas um sentido crítico severo, quer acerca dos ricaços pacóvios que o desdenhavam, quer acerca de episódios estranhos ou imorais acontecidos no lugar ou nacionais muito falados, contudo a sua linguagem poética nunca era malidizente, despresiva ou ofensiva. Envolvia sim, sempre, uma insinuante sageza malidicente e cínica, quase sempre pouco perceptível para o criticado dada a sua habitual boçalidade. Neste aspecto o Bexiga tornou-se exímio. Era a sua vingança, mesmo assim fazia-o com idéias e beleza poética.
Agora o Bexiga tem o seu livro editado, e não porque fizesse por isso, mas porque, passados vinte e cinco anos após a sua morte, o povo da freguesia renconheceu a sua poesia como valor acrescentado à sua identidade. Ainda por cima enriquecido com as ilustrações do mestre pintor gorjonense Adão Contreiras que concebeu imaginativas composições do Bexiga com a bicicleta e canastas de vender berbigão e do seu retrato a traço livre do Bexiga com o seu tradicional "chapéu às três pancadas".
Pelo livro, pela bela placa colocada no Rossio da aldeia, pelo reconhecimento colectivo do mérito da sua obra, o Bexiga voltou ao nosso convívio e "passou a contar" entre os seus conterrâneos.

Etiquetas: