MARAFAÇÕES IX
Afinal, também um homem religioso e dignitário da igreja católica como D. Dantas, bispo de Beja, concede (Público,20.01.07) que o embrião «não é pessoa humana, porque não tem consciência dos seus actos. Não tem alma». Contudo tal concessão é feita apenas no plano do humano, isto é, do compreensível pela consciência da pessoa social, a que é ou não responsável pelos seus actos perante os outros. Para certificar que assim é, que tudo se passa no plano da terra e não do céu, retirou a alma do embrião, portanto, neste não há qualquer intervenção do divino, tudo é do domínio do livre-arbítrio dos humanos.
Até aqui parece estar de fora o homem religioso da revelação e vir ao de cimo a pessoa que compreende os problemas revelados pela existência. Mas um crente convicto, um bispo, apesar de conhecer e viver entre os problemas reais da vida do dia a dia, olha e vê no céu a causa primeira de tudo, o princípio imutável. Pode ter compreensão pelos humanos nos controversos casos entre a lei adaptada e a lei revelada, entre a adaptação à necessidade e a sujeiçao à imutabilidade, mas opta sempre pela ordem sobrenatural tomada como irrepreensível.
E tanto assim é que, após condescender baixar-se à compreensão da condição humana, logo se eleva para o alto, de bíblia na mão, para lembrar que esta coloca o começo da vida «antes da sua concepção», um fundamento, diz, «que ultrapassa a conpreensão humana». Remete portanto a questão para o incompreensível e por conseguinte inapreensível pelo entendimento racional. Ora se esse fundamento(ou mandamento?) é vedado ao nosso conhecimento como podemos tomá-lo em conta nas nossas decisões?
Para o nosso bispo do sim a vida começa antes da sua concepção biológica, o que pressupõe uma concepção imaterial à priori, exterior ao homem e mulher os quais apenas são actores da trama divina. Mas para muitos do não a vida só começa 10 semanas após a fecundação, porque o sistema nervoso central assim, porque a formação ainda assado, etc. Então a vida é algo que surge de repente no feto às dez semanas em ponto? Às dez semanas e um segundo há vida e às dez semanas menos um segundo não há vida? Onde estava ela guardada e programada para penetrar a carne e de repente torná-la viva? Vindos do lado oposto, estes do sim, concebem a vida de forma análoga aos do não, pela via milagrosa.
É evidente que a vida começa com a reunião de células, que por sua vez já tinham vida própria, e depois por um processo biológico(metamorfósico?) passam a ser uma só carne e vida com identidade única. E desde esse momento não só existe vida como existe uma promessa de ser humano. Mas, como diz D. Dantas, um feto não é pessoa humana porque não tem consciência dos seus actos. Provavelmente nem terá ainda qualquer consciência de que existe antes de lhe ser cortado o cordão umbilical.
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